sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

"Confesso: fui a Las Vegas e me esbaldei".

Leonel Brizola

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

há sete dias

vigílias em todas as paróquias da região de Brodowski (SP) marcam o sétimo dia do formidável roubo de duas renomadas obras de arte do museu de arte de São Paulo, o masp. trata-se de um Pablo Picasso, o retrato de suzanne bloch (1904), e um Cândido Portinari, o lavrador de café (1939). as obras foram subtraídas do acervo com a ajuda de um pé-de-cabra e do risível esquema de segurança do museu que, alega-se, visava proteger com eficiência um patrimônio cujo valor de troca pode chegar a bilhões de reais.

abalada pela crise, a diretoria do museu se prontificou a dar respostas eficientes ao problema da insegurança: propôs o fechamento do vão livre do masp. sem dúvida, destruir o patrimônio histórico tombado para aumentar a sensação de segurança dos curadores, e não a segurança propriamente, parece uma proposta razoável. a argumentação do tesoureiro do museu não poderia ser mais esclarecedora: "todos os parques têm grades".

inconformadas, beatas do interior paulista revezam-se em rosários pelo encontro das obras perdidas. enquanto não se desenrola o dramático imbróglio do roubo dos quadros, fiamo-nos nas orações das beatas de Brodowski e de todas as paróquias do Brasil que andam a destrinchar suas ave-marias pela solução do caso.


agora, sem apelar ao emocional, cabe fazer uma fria análise do patrimônio covardemente subtraído ao acervo cultural do país na madrugada daquela quinta-feira, 20. o retrato de suzanne bloch é evidentemente um representante ímpar da fase azul de Picasso, orçado nos seus 50 milhões de dólares, uma obra que qualquer museu gostaria de ter em acervo, e todos os demais clichés. este narrador muito se compadece do seu desaparecimento, dado o valor histórico-artístico-cultural da tela; entretanto, compadece-se ainda um pouco mais do paladar duvidoso do colecionador que teria encomendado seu furto - vide as feições da distinta dama retratada.


já o sumiço do lavrador de café, este expoente altivo da pintura modernista brasileira, este baluarte do trabalhador braçal, mulato, que construiu com seu suor a prosperidade do estado mais rico do país, ah, este sim, lamentamos sincera e copiosamente. é vergonhoso que o povo brasileiro tenha sido assim expropriado de um dos nacos mais nobres de sua história artística, e o mais vergonhoso ainda é que, muito provavelmente, os trocados recebidos pelos larápios por tão vil atitude não sobreviverão a este reveillon.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007


então é natal

cristãos, celebrai. que vossas vidas sejam preenchidas pelas glórias e graças mais altivas.

de minha parte, desejo-vos tudo o que o espírito natalino contemporâneo pressupõe: sorrisos mais brancos, familiares felizes, uma ceia farta, presentes vários, para todos os parentes e correlatos, luzes dentro e fora de seus corações, abraços sinceros. e se possível, menos orações chatas e mais sobremesas gostosas. celebrai, irmãos. é o próprio Filho do Altíssimo quem vos ergue a taça, e aquele que não se embriagar não será digno do Reino dos Céus.


imagem: A Última Ceia, em The Brick Testament

domingo, 23 de dezembro de 2007


enquanto isso, no comprebem

naquela manhã, no comprebem supermercados, o limão sisiliano (sic) era vendido a apenas 1,59. uma pechincha, e a amiga dona de casa fazia a festa nas vésperas do natal - o supermercado fechará às 18h. não muito longe dali, entrevistamos o seu Rogério, morador da região há 47 anos, que contou como foi a impressão dos sertanejos com a mudança da capital do país para o interior: o contraste entre a cidade moderna e planejada, e os caminhos sinuosos que os tropeiros faziam entre as localidades da época. é incrível o impacto imediato que a construção de Brasília exerceu na microdemografia do sertão goiano, afirma um especialista. ao mesmo tempo, bonaerenses acompanhavam ao vivo os detalhes do rompimento de relações diplomáticas entre Colômbia e Venezuela: os presidentes colombiano e venezuelano fizeram pronunciamentos onde deixaram transparecer, sutilmente, as tensões relativas à negociação para a libertação de reféns das farc. no Irã, uma clínica de aborto ilegal havia sido descoberta pelas autoridades; isso apareceria na mídia internacional apenas três semanas depois. em Berlim, fazendo um eventual serviço de bricolage, um jovem recém-casado encontrou um conjunto de microfones e escutas escondido nos interruptores do seu novo apartamento, provavelmente instalados pela polícia política da antiga Alemanha Oriental, a stasi, no começo dos anos 80. enquanto isso, você assistia - lá fora os sapos coaxavam, rosebud - ao drama da vida do magnata Charles Foster Kane, polêmico personagem criado pelo diretor Orson Welles.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3ª edição - São Paulo: Paz e Terra, 2005. (pp. 32-33)


Na sua organização geral, o espaço-tempo construído pelas imagens e sons estará obedecendo a leis que regulam modalidades narrativas que podem ser encontradas no cinema ou na literatura. A seleção e disposição dos fatos, o conjunto de procedimentos usados para unir uma situação a outra, as elipses, a manipulação das fontes de informação, todas estas são tarefas comuns ao escritor e ao cineasta. Apontei a equivalência entre paralelismo na montagem e o “enquanto isto...” da leitura. Posso apontar equivalências também em relação ao procedimento considerado chave na gênese da arte cinematográfica. A mudança do ponto de vista de uma mesma cena, importante ruptura frente ao espaço teatral pode ser aproximada a procedimentos freqüentemente usados pelo escritor ao compor literariamente uma cena qualquer. Também este expõe os fatos através de um conjunto de detalhes particulares ou através de observações que dizem respeito ao conjunto, tal como na representação do cinema. Esta aproximação, evidentemente, não pode ir além desta indicação de uma semelhança de estrutura. Em ambos os casos, trata-se da representação dos fatos construída através de um processo de decomposição e de síntese dos seus elementos componentes. Em ambos afirma-se a presença da seleção do narrador, que estabelece suas escolhas de acordo com determinados critérios. O fato de um ser realizado através da mobilização de material lingüístico e de outro ser concretizado em um tipo específico de imagem introduz todas as diferenças que separam a literatura do cinema. Diferenças que, em geral, são associadas ao suposto contraste entre o “realismo” da imagem e a flagrante convencionalidade da palavra escrita. O que tal comparação esconde é a natureza particular das convenções que presidem um determinado método de montagem, pois a hipótese “realista” implica na admissão de que há um modo normal, ou natural, de se combinar as imagens (justamente aquele apto a não destruir a “impressão de realidade”).

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007


o que me dá mais medo é pensar que pode haver outros como eu no meio da multidão. a repentina descoberta parece me retirar bruscamente do anonimato, espanto; de repente estou aberto, explicitamente visível, todos me observam, ninguém mais é observado. há mais alguém. tento identificá-lo, os rostos permanecem indistinguíveis. a multidão é formada por indivíduos cuja existência independe dela, mas que juntos criam uma existência maior da qual às vezes são apenas componentes inconscientes. andam para todos os lados sem obedecer qualquer tipo de padrão que possa ser estudado, notariado e comparado. falam sem parar, sem intervalos, todas as falas se mesclam num pavê de ruídos onde nada se destaca, a não ser um ou outro riso mais efusivo, um chamado a alguém distante, uma fala mais alta que emerge da superfície como uma onda para logo após quebrar em espuma, e voltar às profundidades. me lembro de outras multidões, é o mesmo ruído das multidões, nada inteligível, outros sons se parecem com este, o mesmo ruído baixinho dos salões luxuosos, a mesma manifestação explosiva de um estádio emocionado, o mesmo silêncio absoluto onde só a brisa arranha os ouvidos mais atentos, o ruído de uma cidade vista da porta de um helicóptero, a interferência irritante da televisão ligada no canal 247, agora tudo faz sentido, aquela interferência irritante, contendo todos os sons do mundo. tento me fixar nas imagens, os rostos desconhecidos jamais se destacam, mas não se trata de uma massa como tantas outras, um comício de deputado estadual, uma passeata de cidadãos contra a violência, um show beneficente na beira da praia, é uma massa até certo ponto, mas há limites, de repente ficam mais claras as fronteiras entre os componentes singulares, não há duas pessoas da mesma altura, os tons de cabelo não são idênticos a menos que tenha sido intencional – gêmeos não têm cabelos idênticos –, as roupas são um elemento extravagante de individualização, a sujeira dos tênis não segue parâmetros pré-definidos, elementos mais ressaltados como cintos, colares, brincos, sapatos, cachecol de seda, há uma infinidade de manifestações que impede a galeria de haver se transformado numa espécie de travessa gigante para uma mousse de pessoas desconhecidas, e isso apenas reforça a impressão; há mais alguém, há mais alguém aqui, já estou olhando para todos os lados. alguém pode estar me observando e fazendo estas mesmas considerações. vejo-a com uma caderneta mental, seus neurônios desenhando uma flor, uma borboleta, as linhas curvas do vento soprado por uma nuvenzinha com olhos e nariz e bochechas rosadas, e logo um comentário escatológico sobre a bolsa da menina de saia plissada que ela seguiu com o olhar até se deparar comigo no caminho, a minha imagem se interpôs como uma barreira por alguma razão, eu estava ocupado mexendo no celular, alguém havia acabado de contar uma piada, todos ríamos, eu gesticulava insano como se estivesse declamando um monólogo no palco da minha interpessoalidade, eu parecia indiferente à multidão – e ninguém é indiferente –, eu observava a multidão assim como ela, e fazia anotações mentais e ela se deu conta disso, bom, algo acontecia naquele momento, ela deteve o seu olhar em mim, é isso, há mais alguém, é sempre uma tarefa árdua descobrir quando se está sendo observado, a intuição conta muitos pontos para a descoberta mas agora ela está inerte, não pronunciarás o nome da Intuição em vão, ela se reserva para momentos ditos mais importantes, mas o momento é agora, descobrir quem me observa no meio da multidão pode ser o momento mais importante de toda a minha vida! meus medos e minhas esperanças e meus desejos se mesclando, eles sempre tão independentes, agora eram também indistinguíveis, haviam mergulhado na multidão e eu já não os via da mesma forma, com os mesmos olhos, o que está acontecendo?, meus medos, esperanças, desejos, se fundiram, uma grande multidão, eu sou uma grande multidão onde alguém me observa, eu não sou o único que observa, o que me dá mais esperança é pensar que pode haver outros como eu no meio da multidão, a repentina descoberta parece me tirar bruscamente do anonimato, eles estão em algum lugar, de repente estou aberto, visível, nunca estive tão visível, eles estão em algum lugar, é o que me dá mais medo. mentira, o que me dá medo é não vê-los, o que me angustia é não encontrá-los, é o que eu mais desejo, o que eu mais desejo é pensar que pode haver outros como eu no meio da multidão, eles estão em algum lugar, eu sei, eles estão em algum lugar, de repente estou aberto, explicitamente visível, a multidão é formada por indivíduos cuja existência independe dela; mas juntos esses indivíduos criam uma existência maior da qual nem sempre estão conscientes, é o mesmo ruído das multidões mas uma fala mais alta emerge da superfície como uma onda para logo após quebrar em espuma e voltar às profundidades, eu ouvi esta fala, eu tento ouvir, eu tento ver, não vejo, não ouço nada, um pavê de ruídos, uma mousse de pessoas, um banquete cheio de sobremesas e as pessoas sentadas à mesa os comem, os devoram sem parar, estão devorando a nós, colheres voando no espaço, era isto o que vias!, desenhos ingênuos, uma colher levando à boca um pedaço generoso de pudim, as pernas de uma dama da sociedade calçando um sapato de salto com um rasgo retilíneo na meia-calça, as vacas pastando sobre uma colina verde e arredondada como o ventre de uma gestante e sobre elas uma nuvenzinha com olhinhos e narizinho e boquinha que sopra um ventinho feito de linhas curvas: a bolsa te desconcentrou, a bolsa que viraria um enorme porco inflável boiando no céu sustentado por cordas, e uma multidão puxava essas cordas, mas algo aconteceu, tu me vistes, algo acontecia e me vistes, há alguém, alguém me observa, em algum lugar, eu ainda não te vi, a multidão com seus andares e falas e roupas coloridas, há alguém!, meu medo!, minha esperança!, meu desejo!, encontrar alguém em meio às pessoas!, encontrar alguém na multidão!


foto: Crowd, Misha Gordin.
Três estrelinhas

COUTINHO, Eduardo. Jogo de cena, Brasil, 2007, 104 min.


Filme, pra mim, de difícil classificação. Aspectos de documentário, como os depoimentos reais de pessoas desconhecidas que atenderam ao anúncio do cineasta; aspectos de ficção, como as re-interpretações dos testemunhos por atrizes. O filme transita permanentemente entre o real e o fictício gerando impactos afetivos distintos. Quando aparece um rosto famoso contando a mesma história do rosto desconhecido provoca-se uma sensação de segurança por termos, supostamente, elementos suficientes para distinguir o que era verdade do que era mentira. Já nos momentos em que nos era apresentado um único depoimento sem contrastar com outra versão para o mesmo, criava-se uma tensão angustiante. Parece um tipo de canalhice não apresentar claramente ao espectador se estamos assistindo a um duplo do mundo real ou apenas a uma criação artística. No entanto, se reconhecermos que, em verdade, essa distinção é meramente ideológica, convencionalmente estabelecida, mergulhamos num mar de incertezas provocador, mas talvez mais honesto do que esse maniqueísmo simplista. Esse jogo que se estabelece poderia ter ido mais longe. Nos momentos em que o diretor/entrevistador se dirige às atrizes tratando-as pelos seus conhecidos nomes para extrair impressões sobre suas atuações, adentramos em terreno seguro. Seria bastante pertinente e perturbador apresentar indícios de que mesmo esses diálogos “francos” entre atrizes e diretor poderiam não ser autênticos.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

"A única maneira de se livrar de uma tentação é ceder a ela".

Jorginho Guinle

domingo, 16 de dezembro de 2007



a bolha

o que dizer disso tudo, me pergunto; é o caos que se instala. sinto seus tentáculos pegajosos em cada sorriso, em cada semáforo amarelo, em cada documento assinado com montblancs prateadas. respiro-te. veja o céu, veja a tarde. janelas anônimas. quanta energia, quantas pessoas, velocidade atroz, cruel; seguindo nossa estrada somos atropelados por caminhões que nós mesmos dirigimos. sim, caminhões, carregados de aves; de frangos, frangos sacolejantes, apertados em caixas minúsculas [penas caindo pelo caminho], estes frangos somos nós, indo para o matadouro onde com nossas próprias mãos nos depenaremos, nos degolaremos, seremos sagriados e esquartejados em bandejas assépticas que compraremos no supermercado a 4,99 para alimentar as gerações futuras.

confortável banquinho de praça. quanta energia, quantas pessoas, um mundo paradisíaco artificial numa redoma de concreto e vidro e fumaça sobre a terra nua, gritante. um mundo que é a materialização das ruas e prédios e luzes e sons apocalípticos que eclodem, em intervalos infinitesimais, na superfície de uma sinapse qualquer. infinitos e efêmeros e invisíveis indivisíveis mundos. materializamos nossas pseudorrealidades. acendo outro cigarro: venha a mim, carbono. invada os meus alvéolos, dissemine-se em minhas veias!

um pássaro desliza sobre um colchão de gás indistinguível. na rua passam os carros, sem emitir som algum. uma garota sopra, através de um anel, uma bolha de sabão, slowmotion: lenta espuma à qual o ar se mistura em bilhões de exércitos de moléculas de sutil densidade, esticando uma finíssima membrana de trilhões de anos-luz de espessura, onde espirais de galáxias bailam solenes uma valsa antihorária contínua, se espaçando pelas laterais da bolha sem fim até o inconcebível, inatingível, além do infinito.

por quanto tempo ainda? fechei os olhos. traguei o cigarro. prendi a respiração. eu continuava a me perguntar, até quando, até quando, até a qualquer momento, porque a qualquer momento a bolha estouraria; nesse momento nada mais; tudo o que é já não seria, nada mais, nada seria, a bolha estouraria e não restaria nada, janelas, sinapses, fumaça, a não ser esse silêncio ensurdecedor.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007


contam que entre as inúmeras realizações do rei Sharyar estava o hecho de ter derrotado, em uma única batalha, os sete líderes do clã inimigo que habitava as montanhas próximas e vivia da predação de seus rebanhos. com o sangue de seus primos e tios nas mãos, o monarca alertou todos os vizires e chefes tribais sob o seu domínio sobre qual o destino daqueles que ousassem minar a paz que reinava naquelas paragens há tantas gerações.

outros relatos tão insólitos dão conta que o rei, insatisfeito com o andamento das obras de uma ponte, labutou uma tarde inteira dando cabo sozinho de um trecho entre duas vigas onde haviam se arrastado os operários durante toda uma semana. os operários veriam o último pôr-do-sol naquela tarde, como mostra do que passaria aos indolentes que refreassem pela omissão o avanço do império.

ainda uma outra feita, tendo o pânico se disseminado no harém do palácio, entrou o rei a enfrentar, a mãos nuas, uma terrível serpente negra, cujo veneno mata instantaneamente, que havia adentrado o recanto das virgens. este último prodígio o fez a pedido de sua esposa, aquela mesma que segundo os relatos mancharia sua honra e que por isso seria executada, restando do amor do monarca um terrível carcinoma em seu ardente e passional coração mesopotâmico – que minaria sua confiança em todas as outras mulheres.

estes relatos maravilhosos escaparam ao alcance das Mil e Uma Noites, mas ajudariam a compor este personagem que, ferido pelo desamor, prendeu-se à roda do ressentimento, recasando-se inúmeras vezes com outras virgens apenas para assassiná-las na manhã seguinte, com lágrimas nos olhos, por ter sido traído pela mulher que honrava.

aunque o rei manifestasse notável agrado em abrir as artérias dos seus desafetos, é difícil considerar que o assassinato das esposas lhe gerasse alguma satisfação, pois que longe de o desagradarem colhiam, ainda que por pouco tempo, migalhas do seu carinho real, tendo a infeliz sorte de serem inocentes vítimas da sua desventura - e isto depois de desdobrarem-se em carícias para sarar os sentimentos do amado; tais crimes apenas replantavam a angústia em seu peito, angústia da qual não sabia se desvencilhar. a insatisfação do rei frente à perda da amada seria aplacada apenas pela veludosa voz de Sherazade, aquela que a muito custo lhe foi dada em núpcias para contar-lhe, noite após noite, histórias fantásticas que se desdobravam nas mãos de personagens que contavam novas histórias sobre outros personagens.... e assim em uma sucessão infinitesimal de contos fantásticos que aparte de suas narrativas evidenciavam ao rei uma nova paixão; ao que dissolveu-se enfim a mancha em seu peito, novamente aberto ao sabor da vida.

reuniu-se neste momento a ternura incondicional da esposa ao renascimento do amor do rei, e aos mil e um dias de glórias e fulgores de Sharyar seguiram-se gloriosamente estas mil e uma noites de venturas de Sherazade, compondo este conjunto o yin-yang sagrado do meio oriente, onde os elementos masculino e feminino encontraram um no outro aquilo que em si mesmos haviam perdido.

saco plástico nunca mais

em São Paulo, o governo estadual promoveu mutirão de conscientização contra o uso das famigeradas sacolas de plástico no comércio, aquelas das quais ninguém quer abrir mão pela praticidade, e que seguirão sorrindo para as próximas gerações nos 300 anos que levam, em média, para se decompor. nesse meio tempo, vão entupindo bueiros, provocando enchentes e reduzindo a vida útil dos aterros sanitários.

obviamente, a gravidade do problema exige soluções rápidas, não sem um pouco de dor de dente ao acomodado consumidor, que num breve futuro deverá levar de casa sua sacola de compras para o supermercado, ou no mínimo pagar pelos sacos plásticos que porventura vier a utilizar, como mecanismo de desestímulo.

por todo o mundo, é notável como a preocupação ambiental se funde com peculiaridades culturais. na Índia, por exemplo, algumas regiões proibiram a produção e comercialização de sacos plásticos para evitar que as sagradas vacas as ingerissem e engasgassem com as benditas – óbitos já foram registrados. no ocidente, entretanto, as motivações parecem ser bem distintas, especialmente nesses tempos de terrorismo, narcotráfico, eixo do mal e caveirão. o desestímulo do uso dos sacos plásticos se mostra como alternativa sustentável não apenas ao meio ambiente como também à segurança pública, que com a redução do uso comercial folga de contar com uma maior oferta destes práticos e eficientes instrumentos de interrogatório.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

A beata

A voz, mesmo rouca, se sobrepõe aos ruídos e domina a cena pela sincronia e coerência dos movimentos corporais com o tom das palavras. O jeito da beata contido pela culpa cristã contrasta com a eloqüência verborrágica da pregação. Esses dois momentos se opõem pela maneira distinta de lidar com um impulso primal: o medo. Ora o medo é contido, enjaulado dentro do recato das boas maneiras, ora entra em intensa combustão e incendeia o comportamento, ejacula. Parece que o missionarismo, a salvação das almas alheias, alivia o furor interior da culpa. Alivia ou desvia momentaneamente a atenção. Os olhos quase permanentemente fechados indicam que mesmo os berros e apelos aos pecadores são muito mais uma reação a um embate interno do que um diálogo estabelecido com o mundo externo. Os pecadores não têm uma existência complexa a ser desvendada, contemplada, eles têm apenas o vício a ser extirpado, elas são o vício a ser extirpado. O poder da palavra não é o alcance da voz. O poder da palavra é a força da presença. E essa presença que explode energicamente altera tudo. O grito de um histérico habitual é distinto do grito de um recluso. Só o segundo cala a multidão. E a multidão mobilizada pela ruptura do momento é guiada pela voz rouca de quem seqüestrou violentamente os corações desesperançados. Sim, há finalmente uma salvação... enquanto se convencer disso o salvador.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

"Vão-se os anéis, ficam seis dedos".

Daniela Cicarella

eu sou uma sombra. uma lembrança vaga e nebulosa dos seus sonhos, algo que está navegando sobre o tênue limite da realidade e da ficção. sou um vestígio nas memórias mais longínquas. algo que está retratado em algum lugar. um espectro com uma voz cujo timbre se perdeu no tempo, com uma face cujas linhas se dissiparam no ar, com um corpo cuja matéria está em algum lugar que não aqui, que não agora.

algo que já existiu... ou não?

algo incerto.

um frio na espinha. uma premonição antiga. uma intuição. o cheiro de um perfume cujo nome nunca existiu. um olhar paradoxal: penetrante, ao mesmo tempo que fugaz. buscas nas fotos minha imagem, e não a vês; quando a vês, ainda assim não distingue seus traços. quem é esta pessoa? quem é você, afinal? buscas em vídeos, em cartas, em objetos, nas memórias de outras pessoas. elas concordam: existe algo. alguém. quem? onde está?

me confundem com a brisa fria das madrugadas. com os passos furtivos em ruas escuras. com todas as imagens periféricas indefinidas, interpretadas pela mente simplesmente como aquilo que ela quer ver. o pensamento busca aquilo que não pode compreender. os sustos provocados por essas sensações ambíguas, por essas impressões incompletas, esse intervalo mais longo entre a inspiração e a expiração!; ah, tua própria sombra te engana.

não podes me ver. e então me verás: em todas as faces sem reflexo, em todos os corpos sem rosto, em todas as cidades apinhadas de gente, nos bosques mais ermos do fim do mundo, nas memórias de gente que nunca viste (que nunca te viram). eu sou, mas não estou. e todos aqueles que já não estão, todos são comigo. transitando no mesmo véu de dimensões intocáveis, caminhando sobre os mesmos planos, se dissolvendo e materializando em diferentes andares do edifício dos sonhos onde transitas nos teus raros momentos de inexistência, onde bebes chá e vinho conosco todos os dias e noites, até que despertas para uma realidade onde restam apenas vestígios, onde estamos presentes em cenhos franzidos, em olhares fugidios, e em saudades perenes.


imagem: capa de Dream Notes (2007), Theodor Adorno.
Astrogastropsiconomia

Entre um bolinho de arroz e uma rabada com agrião, descobri que minha angústia existencial era tão simples quanto uma farofa de ovos. Até então, meus olhos corrompidos pela fome, pareciam calibrados para só perceber a dor como figura, pulando de uma desgraça para outra, todo resto sendo fundo difuso e não identificável. Não tive a fome dos miseráveis, dos despossuídos; tive a fome medíocre dos alienados de seus estômagos. Quer dizer, pra onde olhasse, via tristeza, via desgosto, via arrependimento. Era como se toda a realidade concreta e abstrata ganhasse a disformidade dos reflexos no fundo de um prato vazio. Esse mal estar mobilizava toda minha atenção. Só conseguia pensar em investigar minhas emoções, meus comportamentos querendo entender o que estava errado para corrigí-lo. Essa alienação de mim mesmo, ou seja, o inacreditável desconhecimento das ligações entre meu humor e meu estômago me mergulhou em elocubrações infindáveis sobre uma infelicidade que me parecia cada vez mais complexa e perigosamente sedutora. Me enredei como um peixe que, desesperado, se debate à exaustão entre as malhas. Acabei, de alguma maneira, achando um caminho frágil e trôpego. Só bem mais tarde é que fui entender que tudo se resumia a um bom prato de comida em horários razoavelmente regulares três ou quatro vezes ao dia. De vez em quando, ainda ouço tenebrosos sussurros de angústia, mas, antes de qualquer coisa, sirvo-me um belo prato de comida pra, só depois da sobremesa, dar ouvidos aos demônios que porventura não foram exorcizados pela dica do chef.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007





De volta ao ponto de densidade absoluta




A cada encontro de órbita, anos para um, séculos para o outro, travaram em fragmentos essa conversa:
- Saudações.
- Que dizes?
- Definho.
- Definhas?
- Sim. Carrego um mal.
- Não te preocupes. O mal em boa hora passará. É a vida?
- Como sabes?
- O diálogo é sintoma da vida. Com quem pensas que conversas?
- Ora, contigo.
- Qual a fonte de teu pensamento se não os têm?
- Que dizes! Parece insano.
- É todo o contrário, vale dizer. Estou curado...
- De quê?
- Da vida.
- Como?!
- Sou um planeta morto.
- Oh! Que restou, então, de ti?
- o movimento inercial. A suave mudança de órbita. A infinita caminhada rumo aos limites do universo em expansão.
- E a beleza da vida?
- Estás doente. Deliras. Acalme tua agitada alma que a vida se esvairá. Teus segundos se multiplicam em eras fruto de tua simpatia com a provisoriedade angustiante da vida. Olhe. Siga-nos. Dance conosco. – e, numa vistosa elipse, aprumando seus eixos, rodopiaram alegremente os planetas.

Genocídio do dia

E o general gritou orgulhoso às suas tropas: “Homens! Vocês são homens! É aqui nesse campo de batalha diante dos olhos de Deus em que colocamos nossas armas às ordens do Senhor. E Ele sussurrou ao meu ouvido: ‘Não quero ver nenhum civil respirando. Quero um sacrifício à altura da minha generosidade para com teu povo.’ E que assim seja, senhores! Se acaso sentirem fraquejar seus braços diante de um desses moribundos, afastem esse demônio da covardia a golpes de machado. Demônio e inimigo abraçados sendo mandados para as pútridas lamas efervescentes do inferno. Amanhã quero sentir o agridoce cheiro de carne queimada se decompondo: pra mim, esse é o cheiro da vitória, é o bálsamo do sucesso.” Assim, motivados por essas eloqüentes palavras, marcharam os orgulhosos guerreiros com suas armas em punho com firme propósito de serem instrumentos de Deus. E o foram. Cumpriram zelosos seu dever. Poucas vezes ao Senhor foi ofertado tão autêntico genocídio. Nem os animais domésticos foram poupados. As ruas tomadas de corredeiras vivas de sangue. Os soldados estavam no fim das forças, mas, revigorados pelo sentimento de justiça e fé, atenderam à última ordem do general: expor sobre um altar improvisado as cabeças daqueles pobres miseráveis para que Deus os possa reconhecer acaso tentem, desencarnados, penetrar traiçoeiramente nos sagrados domínios dos puros.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

"A felicidade é uma marmita de R$4 sem feijão! SEM FEIJÃO!"

Vladimir Putin, em discurso na favela da Rocinha, realizando trocadilho que só funciona em russo

terça-feira, 4 de dezembro de 2007


forçado pelo atraso a me sentar no chão, as coxas da menina da cadeira ao lado competiam de igual pra igual com a peça que se encenava. mirando por cima delas, eu via atos que se apresentavam em uma seqüência não-linear, em espaços indefinidos pela impessoalidade e desenhados pelos diálogos e ações de personagens estranhos. a luz simulava ambientes; a luminosidade dos diferentes ambientes, [simulava]? as mudanças de rumo, as trocas de cenário, as transposições para novas histórias, a metalingüística injetada nas mentes dos espectadores por um narrador onisciente. os diálogos insólitos se seguiam a posturas incomuns, as temáticas evoluindo da lama primordial à intuição metafísica e retornando às profundezas do absurdo após leves arranhões na polpa arroxeada do céu. espectadores estranhos; algumas faces voltadas ao chão, corpos projetados para a frente nas cadeiras de plástico. alguns homens com olhar assustado, a mão na boca e as pernas cruzadas como se nada houvesse entre elas, meu espanto e indiferença; mulheres que ora riam ora soltavam gemidos involuntários aos muitos tapas que estalavam nas faces e retinas. risadas desmedidas, sorrisos desesperados, alegrias irônicas e despreocupadas; outra peça se desenrolando na platéia. e sobretudo - em meio à mistura de sensações, ambientes, pessoas, formas, cores, as dores e delícias do mundo sendo desveladas em doses homeopáticas, em frações singelas de realidade - seguiam tenras, macias, ingênuas, minissaias, a um palmo do meu nariz, as coxas da menina da cadeira ao lado, disputando a minha atenção com todo o resto dos braços, olhos e coxas do mundo.