quarta-feira, 30 de abril de 2008


naquela manhã o Dr. Hofmann deliberadamente ingeriu 250 microgramas da substância, considerando esta proporção a dose necessária para experimentar os seus efeitos. a leve sensação de desequilíbrio não era nada comparada com as sensações que então se manifestaram: inquietude, vistas distorcidas, imaginação extremamente estimulada, imagens coloridas, formas fantásticas se revezando num caleidoscópio caótico, ora geométrico, ora pastoso. Hofmann suava; literalmente, derretia. pediu que seu assistente o acompanhasse até sua casa de bicicleta, um passeio recheado de ansiedade e delírio que o imortalizaria na cabeça e nos corações de jovens de todas as gerações posteriores e de muitos contemporâneos. seu pânico naquela manhã de abril hoje parece cômica: seus móveis tomavam formas monstruosas, ameaçavam atacá-lo, ele ousava rezar a um deus qualquer que houvesse pelo temor de haver sido possuído pelo demônio. o médico chamado pouco caso fez de tanto pavor. e de fato, posteriormente à prescrição médica, restou apenas a tranqüilidade, a virtude, a beleza, a vitalidade; o dia ficou mais lindo e mais brilhante, o café-da-manhã ainda mais delicioso; o Dr. Hofmann ainda nem sabia, enquanto ainda observada a cor dos sons ao redor, mas naquele momento de tormenta e bonança contribuía decisivamente para tornar as vidas de milhões de seres humanos mais agradáveis e reveladoras.

nesta terça-feira, ele pegou sua bicicleta mais uma vez. pedalou pelas estradinhas da colina onde morava, até encontrar uma estrada de tijolos amarelos que o levou, flutuando, a uma cidade de esmeralda.

quinta-feira, 24 de abril de 2008


recrudescimento sísmico. foi esse o palavrão que o menino de onze anos apresentou à dona Osmarina naquela semana em que houve o terremoto. era muito esperto o menino. dona Osmarina olhou assim, meio de lado [de cabeça pra baixo?], pro trabalho da escola, era um desenho muito bonitinho, assim uns círculos, um dentro do outro, vários circulozinhos em cima de um mapa, um pontinho vermelho no centro dos círculos, e pertinho deles havia uma legenda que dizia “São Paulo”; o mapa pintado de lápis aquarelado. o menino disse que era tudo culpa do recrudescimento sísmico, a professora explicou na sala de aula, e todos os alunos tiveram como dever de casa naquele dia fazer um gráfico que explicasse o evento; os lápis de cor saíram do seu breve ostracismo, mapas do litoral com círculos concêntricos surgiram de todos os lados, alguns com mais esmero, outros claramente sem compasso, o do menino tinha até ficado bem bonito, até rivalizava com os trabalhos das meninas [tão caprichosas], sempre cheios de estrelinhas e adesivos; dona Osmarina devolveu o papel e disse que de “recrescimento” ela não entendia nada, mas de rachadura, ô se entendia, que a cozinha estava uma coisa, de madrugada ela levantou da cama pra pegar um copo d’água e foi aquele tremelique, ela estava sentada na mesa da cozinha, e sentiu uma tontura, pensou que fosse da labirintite, mas logo os copinhos de plástico começaram a balançar na prateleira, tudo sacudindo, e os cachorros da vizinhança, uns latiam, outros ganiam, uma coisa esse terremoto; mas foi muito rápido, ela sonolenta, nem entendeu direito até ligar a televisão de manhã pra ver o programa de receitas. agora queria era saber como é que ficava a cozinha, a parede pintada faz nem dois meses, toda trincada. isso a professora não dizia. “é muito bonito, menino”, disse ao entregar o papel, “mas e a minha prateleira nova?”. dona Osmarina pegou a vassoura, ainda tinha pó no cantinho. o menino mirava o desenho, feliz.

terça-feira, 22 de abril de 2008

someone better slap me
before I start to rust
before I start to decompose


Marquês de Sade

segunda-feira, 14 de abril de 2008

última semana


[clique na imagem para ampliar]

domingo, 13 de abril de 2008


- putaquipariu.

ele havia errado [de novo] a tesourinha. tinha feito uma curva a mais. teria que fazer tudo outra vez. uma vez na vida, vá lá; era até divertida a tal tesourinha. curvinhas divertidas essas. uma hora a visão se voltava para os miolos gramados dos eixos, cercados de asfalto, num outro momento a visão sobe ao céu e às janelas dos blocos; o carro desce, o carro sobe, as curvas sempre pro mesmo lado, quatro delas, cuidado ao entrar na via, pode vir um ônibus, um caminhão, uma carroça, um pedestre perdido, não mora aqui; e tome curva, havia errado a entrada, vamos lá, tem que fazer tudo outra vez. uma vez vá lá, mas de novo era dose. a primeira foi fácil, apesar da impaciência; terceira marcha, o carro subia à frente de varandas solitárias, apenas na última um homem recostava-se ao parapeito fumando e olhando pra algum lugar; os faróis do ônibus deslocaram a atenção de volta à pista, a entrada foi suave, seta ligada – era um saco ter que ficar ligando a seta toda hora – ok, vamos para a segunda. a impaciência já havia se dissipado um pouco, o verde da grama ajudava; incrível, ao passar pela curva, à sombra do arbusto, viu uma coruja mãe e duas corujinhas, penugens clarinhas, ele quase via as corujinhas sorrirem, descobrindo o mundo, uma gracinha; já havia chegado ao final, a mesma olhadinha para a esquerda, pista livre, a segunda foi fácil. na terceira, terceira marcha novamente, sobe, sobe, sobe, sobe, todas as quadras deviam ter uma entrada para o eixão, pensou, isso facilitaria muito a minha vida; pensou e depois se arrependeu, depois pensou de novo, já não sabia o que pensar, iria pensar melhor no assunto; a terceira curva já havia ficado pra trás, assim como a impaciência, e foi muito fácil ir para a quarta, a descida foi automática, suave, mas calma aí....

- putaquipariu.

ele havia errado [de novo] a tesourinha. tinha feito uma curva a mais. teria que fazer tudo outra vez. uma vez na vida, vá lá; era até divertida a tal tesourinha. uma vez vá lá, mas fazer tudo de novo era dose. e tome curva. eram quatro no total. a primeira foi feita com muita impaciência, quem é que gosta de errar duas vezes, quanto mais três, era o cúmulo, lá estava o homem fumando, tranqüilo, vou entrar logo, buzina não, foda-se, segunda, as corujinhas! já tinha até me esquecido das corujinhas, muito bacana; beleza, já estou até mais tranquilo…. lá vem a terceira, fácil, reduz a marcha, espera, acelera, ótimo, ok, agora finalmente a quarta, lá vam…. espera aí….

- putaquipariu!!

ele havia errado [de novo] a tesourinha.

sábado, 12 de abril de 2008

curvas. uma mão no volante e outra apoiada na porta, segurando um cigarro esquecido, que só vento consumia. nenhum pensamento vinha à tona naquele turbilhão de texturas, cores e sabores; nenhum alerta. eu sequer sabia o porquê de tudo aquilo. esquerda, direita, seguia apenas, direita, esquerda, sem saber. haveria fim? eu, sinceramente, desejava que não. dava minha vida por isso. seguia perdido, satisfeito, direita, esquerda, eu não sabia, seguia sem saber e sem querer que tudo acabasse. mas quando a última cinza se foi, abrasando a minha mão, o susto foi maior que o incômodo e bastante pra fazer com que tudo virasse; o mundo girando, eu perdendo o controle, no meio do caos, já não via mais nada, só vi meu corpo lançado ao espaço infinito, planando no vácuo silencioso lento sereno livre; voando até o seu destino chão, selando meu panteão no fundo de um vale suave e perfumado: o doce vale sereno livre onde pulsa valente sua jugular. sinto seu perfume. descanso em mui santa paz.

domingo, 6 de abril de 2008


mizifio qué é iscrevê é? iscrevê num é fácio não, mizifio, é uma dificulidade só. tem uns que o santo baixa, num sabe? o santo vem memo e se apresenta, e suncê sente aquela quentura nas mão, as vista fica tremida um pouco, que é o santo se apresentando, e aí suncê segura a caneta na mão e a mão desliza memo, mas aí mizifio tem que tá cum coração aberto e co’as demanda arresovida pra recebê. tem uns memo que o santo passa perto e sente o cheiro e num qué nem sabê, num adianta dá merenda, dá oferenda, o santo rejeita. só faiz que passa perto ansim e num pega na mão não, e num qué nem sabê, e num pode arrengá cum santo que o pai num vai dexá o santo nervoso e o pai num vai contrariá a vontade do santo. tem uns, zifio, que é o santo que baixa memo e suncê vê que a pessoa entrega pro santo e num é a mão dela que mexe, é o santo que mexe e é o santo que iscreve, e a pessoa alevanta depois e sabe de tudim, que ela viu tamém que era o santo que tava iscreveno. aí ocê agradece o santo e faiz um trabaio pra agradecê, que o santo vorta, aí é só suncê chamá, que o santo vorta e dá a bença pra mizifio iscrevê.

o pai vai fazê esse trabaio pra suncê, o zifio senta aqui nessa cadera e discruza os dedo, as perna, pode apoiá as mão no joei, e da próxima vez que zifio vié zifio traiz uma garrafa da aguardente que o pai vai dizê o nome, e traiz uma vela de sete dia tamém, que é pro santo recebê, e o pai vai dexá pra suncê essa guia aqui, que é pra protegê mizifio das querenga dos otro, e sempre que precisá zifio é só pegá na guia e rezá um pai-nosso e chamá pelo meu Santo Guerrero que ele vem fechá o corpo do zifio pa mode ninguém bulí cum zifio, então suncê leva essa guia e suncê num isquece di rezá pru meu santo, que agora o pai vai abri o trabaio e se o zifio merecê o pai vai abri os caminho do zifio pra iscrevê. axé.

sábado, 5 de abril de 2008

ah, como era bela a garoa que caía sobre Brasília! sob a luz do poste ela se desnudava, beijando as também nuas, calçadas frias, sedentas de companhia, brilhando amarelada nos pontos onde se a via; como era bela a garoa, como era boa! a garoa que caía, dançava com ternura, leve, sem valentia, sobre a cidade quase vazia, os carros passando, com seus faróis acelerados, curvas impróprias, sinais desobedecidos, e as asas abertas, braços abertos, com as palmas para cima; ela vinha serena, sobre a minha roupa, sobre a minha pele, sobre a minha cabeça, sobre tudo o que existia; há quanto tempo eu não a via! minha mente vazia, meus passos rápidos, ela caía leve, entregue à gravidade, entregue a mim que até então não sabia, o quão grandiosa, o quão companheira, no meio da madrugada, ela seria, tão doce, tão bela, caindo sobre mim, caia sobre todos, caia sobre o mundo, desabe em gotinhas, arrebate, prossiga, tão serena, desnuda, tão minha, [ninguém mais a via!] éramos eu e ela, éramos só nós, garoa fina, esta calçada fria, sua entrega incontida, sua nudez sem valentia, sua ternura sobre a cidade vazia, eu a via, ela havia, como era boa, como era bela, uma mera garoa, sobre Brasília!

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Palavras ao vento intoxicam moradores de uma localidade no interior do Estado

Cidade, UF - Os primeiros sintomas apresentados pelos moradores foram a incoerência verbal e a afasia. Ainda que seja uma patologia gramatical corriqueira, não foi facilmente identificada pelos médicos da localidade por apresentar fortes semelhanças com a linguagem coloquial regionalizada ou com o jargão classista. Provavelmente, a demora no diagnóstico foi determinante para o alastramento da doença. Em pouco tempo, não havia mais pontos, vírgulas, parenteses nem aspas. Palavras e mais palavras percorriam os canais de comunicação sem mensagens claras nem interlocutores definidos. Apenas horas depois do desastre instalado é que o Poder Público passou a intervir, mas já era tarde para muitos argumentos. Depoimentos recolhidos pelas autoridades apontam para a falta de pontuação e elementos coesivos na construção de períodos como provável causa do fenômeno. Sem se identificar, um homem aparentemente envolvido com o incidente reconheceu a negligência, mas se justifica: “Em português, não tem erro nem acerto. A linguagem é dinâmica e, além do mais, eu estava usufruindo da liberdade poética. É um direito meu, é inalienável! Minha intenção era expressar minha subjetividade, não transmitir idéias objetivas em estruturas lógicas e coerentes. Gato pá certo pouco fora de onde os ovos no entanto tem parece tinha céu de pedras sem caroço!!!!” Segundo especialistas, não será fácil restabelecer a normalidade, o mais importante será evitar mais contágio restringindo os diálogos àqueles que ainda conseguem organizar seu raciocínio logicamente. "Precisamos isolar os infectados. Fazer um tipo de quarentena. Talvez a leitura de uma gramática normativa ou até mesmo a aplicação de fórmulas matemáticas auxiliem no tratamento. No entanto, a cura é incerta e depende muito do tipo de idéias que infectaram o indivíduo causando a desarticulação verbal." declarou um dos membros da equipe de socorro.