quarta-feira, 23 de janeiro de 2008


ao descer do carro eu me dava conta, vencido por mim mesmo e pelas palavras ásperas dela, de um drama pessoal sutil e mortífero. já se afirmou que nenhuma aventura, do corpo ou da alma, era impune; um tom bastante dramático para dizer o óbvio, reconheço, mas naquele momento as palabras martelavam com a força dos preceitos morais. sobre a bigorna, a lâmina ainda incandescente era martelada até quebrar-se, e uma vez quebrada meu equilíbrio se enfraqueceu e meu olhar não conseguia focar nada com nitidez; eu imaginava que o resultado daquele ato libertino era o destino cinzento e contraditório de não poder provar uma vez mais do fruto que eu conhecia tão bem, que já havia provado tantas vezes, para deleite da árvore que os trazia à vida, e cujas sementes eu disseminava onde estivesse. tormentos infindos! suprema ironia das linhas tortas da vida! tanto brilho, tantos sorrisos, tantos prazeres e palavras veludosas, que secaram e se converteram em poeira fina e congestionante que eu sentia cobrir meu espírito.... com que objetivo, além do momento presente? nenhum, talvez, e o presente já não era mais o mesmo. tanta certeza em caminhar altivo sobre as águas, suspenso pela tênue crença em sentimentos alheios e amores intensos e repentinos, certeza desmoronada uma vez findos os amores, do mesmo modo como começam, sem glória nem promessas. seriam as noites de paraíso apenas relampejos em meio à uma vida de martírios? eu agora navegava num tempestuoso capricho alheio, ingênuo, as velas do meu barco cobrindo um corpo de mulher nua na beira da praia, enquanto eu, lançado ao mar, engolia o sal amargo do caos onde me lancei por abrir mão do meu leme e da minha vontade. se grande é o crime, tão grande é a pena, e o tempo apostado neste jogo onde se engana a si mesmo para enganar o mundo cobraria os seus juros: o sono confortável de outrora foi coberto com a mesma lama com que a soberba imaginava soterrar os desvalidos [ah! a vida!]; o olhar foi traído com a crueldade de se encontrar à beira do caminho um falso reflexo e o antônimo daquilo que se buscava. afaste-se, maldição! mesmo com toda a dificuldade, ainda é possível distingüir um fiozinho de luz cruzando os céus, a lanterna do farol da esperança, sinalizando os rochedos do ego. nadávamos nestes rochedos quando a maré subia, saltávamos como os clavadistas nas fendas das rochas desafiando aquilo que chamamos de vida, aquilo que chamamos de eu. ríamos muito neste tempo, muito mais; hoje o teu riso é de esquecimento e inércia, o que a mim se apresenta como um inegável escárnio frente ao passado; hoje os rochedos são sérias ameaças ao casco de uma nave sem velas, que pode ficar em pedaços como o porto de onde partiu - a ilha onde estávamos já não aparece nas cartas. ao descer do carro eu senti o vento gelado e as vagas das ondas que lambiam o convés, e não fosse o farol - que sinalizava alguma esperança além do meu ego, além do teu ego, além das marés de um passado incompleto - nada existiria. nas trevas não existo eu, não existe tu, nem mesmo nós, só existem as luzes do farol e das estrelas, que a tudo testemunham.
"Hoje é um novo dia de um novo Tempo que começou".

Nostradamus

terça-feira, 15 de janeiro de 2008


fica aqui registrada a alegria das velhinhas de Brodowski (SP), com a notícia da devolução das obras de arte roubadas no masp. finalmente as cansativas ladainhas e rosários puderam ser deixados de lado sem remorço. o poder público, por sua vez, já antecipou o carnaval. as velhinhas agradecem.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008


do outro lado do estreito corredor, na fileira em frente à minha, uma garota lia Memorias de Mis Putas Tristes. página oitenta e sete, de uma edição pequena, de bolso. papel de jornal, pensei, ironizando a mim mesmo: sempre gostei de livros de bolso. memories of my melancholic whores: o título denunciava o livro em inglês. a leitora usava óculos. tinha olhos escuros, que eu podia ver quando ela se virava, mesmo por trás das lentes embaçadas dos óculos de acetato. pele morena, cabelos bem pretos, brilhantes, amarrados em uma única trança presa com um laço verde. rosto redondo, nariz proeminente e triangular. traços que, em meio segundo de análise, me pareceram bastante indígenas. que era hispanohablante, não parecia haver dúvida, eu ouvia baixinho seus comentários com a pessoa sentada ao seu lado. se era mexicana, ou talvez hondureña, ou até mesmo equatoriana, não saberia distinguir. mas isso eu não me perguntava; interessava-me sim saber a razão pela qual ela lia a tradução para o inglês de uma obra composta em sua língua materna. estavam livres meu julgamento e minhas livres associações, e decidi que não era perda de tempo pensar nisso. se ela buscava praticar a língua de Wilde e Hemingway, me parecia mais próprio fazê-lo lendo algum autor anglófono, alguém que tivesse o inglês por matéria-prima de seu pensamento, e não o forçado reducionismo de uma tradução. nunca li Machado de Assis, por exemplo, em outra língua que não o português, e se o fizesse seria apenas com a curiosidade de analisar sua tradução. talvez fosse esta a motivação da garota indígena naquele momento. talvez eu devesse ler Machado de Assis ou García Marquez em inglês? bobagem. ela ajustou os óculos, virou a página, oitenta e oito; insistia comigo que era possível. sigo cético.

já passava de uma hora da manhã, e os carrinhos começavam a circular pelos corredores. eu aguardava sem ansiedade pelo jantar. a bandeja que me coube foi entregue com um sorriso, prontamente retribuído: a comissária me havia mirado nos olhos. o parzinho formado pelo garfo de metal e a faca de plástico me fez pensar nos risíveis paradoxos da segurança em vôo, com seus assentos flutuantes, máscaras de oxigênio e limites para o transporte de líquidos na bagagem de mão. a digressão só não foi mais longa porque neste mesmo instante, na poltrona ao lado, a menina fechava o livro. agradeceu à comissária e disse que aceitaria apenas um copo d'água, sin hielo. bebia vagarosamente, aparentando estar perdida em pensamentos. tirou os sapatos, levou a mão direita ao queixo, e o seu silêncio remoía algo que eu não tinha como adivinhar. Gabo seguia em seu colo, em inglês; a água decia pela sua garganta, movimentos musculares involuntários; minha faca de plástico literalmente suava para cortar um filé fumegante; lá fora a temperatura permanecia em confortáveis quarenta e oito graus negativos; a aeromoça perguntava se eu queria café, e me assustei com a xícara, que parecia uma tigela de cereal. em tudo isso minha mente navegava, a quarenta mil pés de altura, perdida nestas considerações, e eu mastigava o filé mecanicamente, criando distrações para me esquecer de um imaginário medo de voar.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

haikais avulsos

I

a paz é uma sanção
a guerra é uma dalila

II

todo conceito impõe limite
todo limite é condição
para, do conceito, a destruição

III

o presente: um trampolim
onde o que ainda não é
vai de encontro ao seu fim

IV

a vida é bela
a vida é bala
na favela

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

“Deixei a chave do carro atrás da cômoda da sala, aquela que tem uma imagem de uma santa, nossa senhora, uma imagem sacra dessas qualquer. O IPVA tá vencido, por isso olho aberto com o DETRAN. Ainda faltam umas 6 parcelas do carro. O vencimento é dia 8. Não esqueçam que eu morri dia 21 de dezembro, quer dizer, a morte cerebral. No atestado de óbito tá escrito 26 porque morri tarde a noite na sexta. Como era fim de semana antes do Natal a turma do plantão deixou pra mexer com papelada só na volta do feriado na quarta. Ainda não encontrei com Jesus “pessoalmente”, mas, pelo que se comenta por aqui, ele é bem atencioso e recebe todo mundo com o maior carinho. Esse ano só dá Flu! Saudações tricolores.”

Mensagem recebido do espírito desencarnado angelo_bbruger37@email.com (os dois b’s e o underline são pra distinguir de outros Ângelos Brugers que fizeram a passagem antes deste. A anterioridade temporal dá preferência no uso do nome também nos domínios astrais)

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

the beast speaks

nossa equipe de reportagem entrevista Aleister Crowley no reveillon do Rio

renomado magista, sintetizador da lei de thelema, excêntrico aristocrata considerado um embuste pelos seus opositores, Aleister Crowley era um dos dois milhões de espíritos que experimentavam na noite passada a transposição de outro calendário solar, na praia de Copacabana. nossa equipe interagiu com o 666 nesta madrugada, em uma festa privada na zona portuária do Rio, e ouviu a sua avaliação da festa da virada em terras brasileiras.

leia tudo e muito mais na edição de amanhã