quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O Sábio disse:

"Também estava lá, e fora de seu horário, o censor oficial, Jerônimo Ortega, que chamávamos de Abominável Homem das Nove porque chegava pontual a essa hora da noite com seu lápis sangrento de sátrapa godo. Ficava por lá até assegurar-se de que não houvesse letra impune na edição da manhã. Tinha uma aversão pessoal contra mim, por minhas veleidades de gramático, ou porque utilizava palavras italianas sem aspas e sem grifar quando me pareciam mais expressivas que em castelhano, como deveria ser de uso legítimo entre línguas siamesas."

Memória de Minhas Putas Tristes, G. G. Márquez

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

em tempo

economistas se desesperam: perderam a mão invisível e agora vai ser foda de achar, muleque.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008


enquanto os rounders do mercado financeiro rebolam na lama que regaram com tanto amor com seus lances de alto risco, as últimas cartas caindo da manga diante de um royal flush fulminante da crise internacional, o Brasil insiste em sorrir e se vê navegando em mares tranqüilos, embora a canoa faça água aqui ou acolá; definitivamente saímos do caminho da servidão e temos tempo suficiente para ponderar as revolucionárias propostas de uma brilhante reforma ortográfica, que incluirá no alfabeto letras que nunca deixamos de usar e extirpará de uma vez por todas o trema, que ninguém usa há muitos séculos. adoptarão (sic) nossos irmãos lusitanos tão polêmica reforma? tudo indica que o momento não é propício a câmbios, tendo em vista a posição dos sadios e católicos parlamentares portugueses contra a aprovação do casamento homossexual. mas isso não nos diz respeito, aliás, pouco da atualidade nos diz respeito, tendo em vista que o brasileiro não quer curtir umas de crise; o presidente já decretou que este será um natal gordo onde se poderá adquirir tudo, ainda que em suaves e infindáveis prestações, e a confiança do consumidor não se abalou com quebra de bancos ou alta do dólar – como poderia, com o Flamengo tão bem na série A do Brasileirão? sem contar o macio colchão de petróleo onde todos repousamos nossas bundinhas abençoadas; não nascemos virados pra lua, e sim para o pré-sal. enfim, se a crise insiste em jogar uma bigorna sobre nossas asas e fazer pesar o sobrevôo desenvolvimentista e evolucionário da nação tupiniquim, se ela nos pára, nos péla – e nos pira – nós já temos a solução: elimina-se o acento diferencial, mata-se o circunflexo e, com um chapeuzinho a menos, levíssimos, moderníssimos, seguimos todos sorridentes rumo ao futuro, que há muito tempo nos pertence.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

chegaram: chuva, amoras e cigarras. tem pra todo mundo!

hora de voltar à vida, esporos queridos. fiat lux!

terça-feira, 22 de julho de 2008

A Modernidade em Três Palavras

- Crédito ou débito?

domingo, 13 de julho de 2008

O CAVALEIRO E O DRAGÃO

O que me impede de desenhar na parede? Essa é a pergunta que me motivou a sentar aqui e escrever nesse rasgo de camisa com gotas do meu sangue. Existe uma discrepância séria entre o que eu acho que seria bom fazer – desenhar, deixar marcas da minha tragédia – e o que me sinto impelido a fazer – não desagradar o dragão. Aí, mais uma vez, tenho que dar razão ao Merlin quando ele diz que o processo a ser trabalhado é a minha relação com meus desejos. Enquanto morava no meu castelo, distante da presença intoxicante e terrificante do monstro, me rendia irrefreadamente a realização dos meus desejos. A partir do meu seqüestro pelo covarde dragão, me tornei um homem sem desejos, sem objetivos, sem perspectivas nessa sombria caverna. A suposição de Merlin é de que a minha vinda para o cativeiro foi o remédio inconsciente para interromper a também destrutiva busca pela satisfação do desejo de satisfazer os desejos dos meus súditos. Ou seja, era refém de uma dinâmica alienante dos meus verdadeiros desejos e, para interrompê-la, vim para cá, supostamente para vencer o cruel monstro sanguinário, na realidade, buscando um lugar em que não desejo nada, me reduzo, me aniquilo. Será que é possível reverter essa dinâmica aqui, sob o olhar dominador e opressivo do malvado dragão? Será que tenho a capacidade de voltar para o meu reino sem me transfigurar num objeto de desejo alheio? Será que não sou invariavelmente a mesma coisa: um objeto do desejo alheio, tendo como única diferença o fato de ser desejado pelos súditos e não sê-lo pelo dragão? Isto me parece fazer sentido, no entanto não sugere claramente uma solução. Será que devo continuar tentando atender aos meus desejos, ou será que aquilo que chamo de desejo ainda não o é autenticamente? Porque, se sou apenas objeto do desejo alheio, desejo apenas ser desejado, o que não consiste em um verdadeiro desejo como eu o entenderia. Será que estou enganado? Será que não sou nem mesmo refém daqui? Será que na verdade tenho apenas que assumir esse desejo e continuar buscando realizá-lo? Se de fato não existe essa necessidade de agir sobre os meus desejos, possivelmente não há realmente uma discrepância na minha relação com o desenhar na caverna. Há, mais uma vez, uma tentativa de fazer algo que suponho poder melhorar minha capacidade de ser desejado pelos outros. Qualquer coisa que faça ou deseje fazer estará preso a essa dinâmica: fazer uma fogueira, tentar fugir, alimentar o dragão, lutar heroicamente contra ele. Acho que só me resta me recolher a um canto longe dos olhos do dragão e de qualquer um e dormir, desejando autenticamente não ser mais nada.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

"Space may be the final frontier but it's made in a Hollywood basement".

Stephen Hawking

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Cursos de educação de adultos:

NOVA MATEMÁTICA: A matemática tradicional foi recentemente tornada obsoleta pela sensacional descoberta de que há séculos estamos escrevendo o número cinco ao contrário. Isto conduziu a uma reavaliação da contagem como um meio de chegar de um até dez.

ASTRONOMIA FUNDAMENTAL: Estudo detalhado do universo e dos cuidados na sua limpeza. O sol, que é feito de gases, pode explodir a qualquer momento, destruindo todo o nosso sistema planetário; o que fazer nesse caso.

Extraído de coletâneas de textos curtos de Woody Allen

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Corpo fragmentado

Eu vi um homem falando da sua loucura. Falando do passado. Disse que via mulheres velhas carregando enormes machados. Procissões tenebrosas anunciando sua imolação em sacrifício. A culpa deveria ser expurgada, mas só o sangue de uma criança poderia redimi-la. Que criança? Ele não é uma criança. Sim, ele é uma criança! Olhando com atenção viu a evidência disso: um cordão umbilical que o ligava a algo, algo indistinguível, disforme. Meu Deus! Um monstro. Mas o monstro não estava fora dele. O monstro estava dentro da barriga dele. Era esse monstro o culpado. Como um gênio maligno, devorava suas entranhas e instigava-o a perpetrar o mal. Do outro lado do cordão estava... sua mãe. Mas como? Sim, ela estava a serviço daquele demônio. Ele precisava fugir, se defender. Corria como um louco. Pintava-se de preto pra se disfarçar. Não adiantava, pois a mulher do machado também se disfarçava. Escondida debaixo de um capuz preto, ela antecipava seus movimentos, sussurrava ameaças ao seu ouvido. Aterrorizado, pra preservar a si mesmo subjugou-se aos seus comandos. Pra salvar a própria pele, empunhou uma faca como ela exigia. Era pra atender às ordens da velha do machado? Não. Ele queria acabar com o mal pela raiz: rasgou repentinamente o próprio ventre pra arrancar de dentro o demônio. Esse monstro era astuto, esgueirava-se por suas vísceras, mergulhava mais fundo no seu interior. Coberto de sangue e perdendo suas forças, o homem desvaneceu. O homem, pra poder falar da sua loucura no passado, aprendeu a olhar pra dentro de si fechando os olhos, extirpar o mal abrindo-os, agir simbolizando seus atos, curar suas feridas falando sobre elas.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Humanos e Bactérias

Então funciona assim: todo mundo já nasce com um pacote de programas de fábrica sem necessidade de licenciamento. Esses programinhas permitem desempenhar funções basiconas, tipo: se alimentar, por meio do movimento instintivo de sucção quando os lábios entram em contato com algum objeto; se encolher para fugir do contato com objetos pontiagudos; se debater quando tem seus movimentos cerceados.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Olha, difícil mesmo é pensar sem linguagem. Tenta aí. Começa assim: pensa numa coisa. Pronto? Pensou? Tá bom, mas não se preocupa tanto. Pode ser qualquer coisa. Ok. Agora, vê se você consegue dissociar a coisa em si mesma que você pensou da palavra, isto é, distinguir a coisa propriamente dita sem dizê-la de alguma maneira. Foda, né? Digamos que você consiga, o que você vê? Uma (artigo indefinido) coisa. Mas a coisa que você pensou é melhor representada por esse exemplo particular não definido de coisa ou pela palavra? Quer dizer, ao visualizar uma coisa, qualquer que ela seja, não parece estar-se fazendo uma redução da (preposição+artigo definido) coisa? Ela não é mais do que a representação mental que visualizou? Será que nossa vida não é mais determinada pelas definições e conceitos que formulamos sobre ela do que pela realidade em si mesma?

quarta-feira, 30 de abril de 2008


naquela manhã o Dr. Hofmann deliberadamente ingeriu 250 microgramas da substância, considerando esta proporção a dose necessária para experimentar os seus efeitos. a leve sensação de desequilíbrio não era nada comparada com as sensações que então se manifestaram: inquietude, vistas distorcidas, imaginação extremamente estimulada, imagens coloridas, formas fantásticas se revezando num caleidoscópio caótico, ora geométrico, ora pastoso. Hofmann suava; literalmente, derretia. pediu que seu assistente o acompanhasse até sua casa de bicicleta, um passeio recheado de ansiedade e delírio que o imortalizaria na cabeça e nos corações de jovens de todas as gerações posteriores e de muitos contemporâneos. seu pânico naquela manhã de abril hoje parece cômica: seus móveis tomavam formas monstruosas, ameaçavam atacá-lo, ele ousava rezar a um deus qualquer que houvesse pelo temor de haver sido possuído pelo demônio. o médico chamado pouco caso fez de tanto pavor. e de fato, posteriormente à prescrição médica, restou apenas a tranqüilidade, a virtude, a beleza, a vitalidade; o dia ficou mais lindo e mais brilhante, o café-da-manhã ainda mais delicioso; o Dr. Hofmann ainda nem sabia, enquanto ainda observada a cor dos sons ao redor, mas naquele momento de tormenta e bonança contribuía decisivamente para tornar as vidas de milhões de seres humanos mais agradáveis e reveladoras.

nesta terça-feira, ele pegou sua bicicleta mais uma vez. pedalou pelas estradinhas da colina onde morava, até encontrar uma estrada de tijolos amarelos que o levou, flutuando, a uma cidade de esmeralda.

quinta-feira, 24 de abril de 2008


recrudescimento sísmico. foi esse o palavrão que o menino de onze anos apresentou à dona Osmarina naquela semana em que houve o terremoto. era muito esperto o menino. dona Osmarina olhou assim, meio de lado [de cabeça pra baixo?], pro trabalho da escola, era um desenho muito bonitinho, assim uns círculos, um dentro do outro, vários circulozinhos em cima de um mapa, um pontinho vermelho no centro dos círculos, e pertinho deles havia uma legenda que dizia “São Paulo”; o mapa pintado de lápis aquarelado. o menino disse que era tudo culpa do recrudescimento sísmico, a professora explicou na sala de aula, e todos os alunos tiveram como dever de casa naquele dia fazer um gráfico que explicasse o evento; os lápis de cor saíram do seu breve ostracismo, mapas do litoral com círculos concêntricos surgiram de todos os lados, alguns com mais esmero, outros claramente sem compasso, o do menino tinha até ficado bem bonito, até rivalizava com os trabalhos das meninas [tão caprichosas], sempre cheios de estrelinhas e adesivos; dona Osmarina devolveu o papel e disse que de “recrescimento” ela não entendia nada, mas de rachadura, ô se entendia, que a cozinha estava uma coisa, de madrugada ela levantou da cama pra pegar um copo d’água e foi aquele tremelique, ela estava sentada na mesa da cozinha, e sentiu uma tontura, pensou que fosse da labirintite, mas logo os copinhos de plástico começaram a balançar na prateleira, tudo sacudindo, e os cachorros da vizinhança, uns latiam, outros ganiam, uma coisa esse terremoto; mas foi muito rápido, ela sonolenta, nem entendeu direito até ligar a televisão de manhã pra ver o programa de receitas. agora queria era saber como é que ficava a cozinha, a parede pintada faz nem dois meses, toda trincada. isso a professora não dizia. “é muito bonito, menino”, disse ao entregar o papel, “mas e a minha prateleira nova?”. dona Osmarina pegou a vassoura, ainda tinha pó no cantinho. o menino mirava o desenho, feliz.

terça-feira, 22 de abril de 2008

someone better slap me
before I start to rust
before I start to decompose


Marquês de Sade

segunda-feira, 14 de abril de 2008

última semana


[clique na imagem para ampliar]

domingo, 13 de abril de 2008


- putaquipariu.

ele havia errado [de novo] a tesourinha. tinha feito uma curva a mais. teria que fazer tudo outra vez. uma vez na vida, vá lá; era até divertida a tal tesourinha. curvinhas divertidas essas. uma hora a visão se voltava para os miolos gramados dos eixos, cercados de asfalto, num outro momento a visão sobe ao céu e às janelas dos blocos; o carro desce, o carro sobe, as curvas sempre pro mesmo lado, quatro delas, cuidado ao entrar na via, pode vir um ônibus, um caminhão, uma carroça, um pedestre perdido, não mora aqui; e tome curva, havia errado a entrada, vamos lá, tem que fazer tudo outra vez. uma vez vá lá, mas de novo era dose. a primeira foi fácil, apesar da impaciência; terceira marcha, o carro subia à frente de varandas solitárias, apenas na última um homem recostava-se ao parapeito fumando e olhando pra algum lugar; os faróis do ônibus deslocaram a atenção de volta à pista, a entrada foi suave, seta ligada – era um saco ter que ficar ligando a seta toda hora – ok, vamos para a segunda. a impaciência já havia se dissipado um pouco, o verde da grama ajudava; incrível, ao passar pela curva, à sombra do arbusto, viu uma coruja mãe e duas corujinhas, penugens clarinhas, ele quase via as corujinhas sorrirem, descobrindo o mundo, uma gracinha; já havia chegado ao final, a mesma olhadinha para a esquerda, pista livre, a segunda foi fácil. na terceira, terceira marcha novamente, sobe, sobe, sobe, sobe, todas as quadras deviam ter uma entrada para o eixão, pensou, isso facilitaria muito a minha vida; pensou e depois se arrependeu, depois pensou de novo, já não sabia o que pensar, iria pensar melhor no assunto; a terceira curva já havia ficado pra trás, assim como a impaciência, e foi muito fácil ir para a quarta, a descida foi automática, suave, mas calma aí....

- putaquipariu.

ele havia errado [de novo] a tesourinha. tinha feito uma curva a mais. teria que fazer tudo outra vez. uma vez na vida, vá lá; era até divertida a tal tesourinha. uma vez vá lá, mas fazer tudo de novo era dose. e tome curva. eram quatro no total. a primeira foi feita com muita impaciência, quem é que gosta de errar duas vezes, quanto mais três, era o cúmulo, lá estava o homem fumando, tranqüilo, vou entrar logo, buzina não, foda-se, segunda, as corujinhas! já tinha até me esquecido das corujinhas, muito bacana; beleza, já estou até mais tranquilo…. lá vem a terceira, fácil, reduz a marcha, espera, acelera, ótimo, ok, agora finalmente a quarta, lá vam…. espera aí….

- putaquipariu!!

ele havia errado [de novo] a tesourinha.

sábado, 12 de abril de 2008

curvas. uma mão no volante e outra apoiada na porta, segurando um cigarro esquecido, que só vento consumia. nenhum pensamento vinha à tona naquele turbilhão de texturas, cores e sabores; nenhum alerta. eu sequer sabia o porquê de tudo aquilo. esquerda, direita, seguia apenas, direita, esquerda, sem saber. haveria fim? eu, sinceramente, desejava que não. dava minha vida por isso. seguia perdido, satisfeito, direita, esquerda, eu não sabia, seguia sem saber e sem querer que tudo acabasse. mas quando a última cinza se foi, abrasando a minha mão, o susto foi maior que o incômodo e bastante pra fazer com que tudo virasse; o mundo girando, eu perdendo o controle, no meio do caos, já não via mais nada, só vi meu corpo lançado ao espaço infinito, planando no vácuo silencioso lento sereno livre; voando até o seu destino chão, selando meu panteão no fundo de um vale suave e perfumado: o doce vale sereno livre onde pulsa valente sua jugular. sinto seu perfume. descanso em mui santa paz.

domingo, 6 de abril de 2008


mizifio qué é iscrevê é? iscrevê num é fácio não, mizifio, é uma dificulidade só. tem uns que o santo baixa, num sabe? o santo vem memo e se apresenta, e suncê sente aquela quentura nas mão, as vista fica tremida um pouco, que é o santo se apresentando, e aí suncê segura a caneta na mão e a mão desliza memo, mas aí mizifio tem que tá cum coração aberto e co’as demanda arresovida pra recebê. tem uns memo que o santo passa perto e sente o cheiro e num qué nem sabê, num adianta dá merenda, dá oferenda, o santo rejeita. só faiz que passa perto ansim e num pega na mão não, e num qué nem sabê, e num pode arrengá cum santo que o pai num vai dexá o santo nervoso e o pai num vai contrariá a vontade do santo. tem uns, zifio, que é o santo que baixa memo e suncê vê que a pessoa entrega pro santo e num é a mão dela que mexe, é o santo que mexe e é o santo que iscreve, e a pessoa alevanta depois e sabe de tudim, que ela viu tamém que era o santo que tava iscreveno. aí ocê agradece o santo e faiz um trabaio pra agradecê, que o santo vorta, aí é só suncê chamá, que o santo vorta e dá a bença pra mizifio iscrevê.

o pai vai fazê esse trabaio pra suncê, o zifio senta aqui nessa cadera e discruza os dedo, as perna, pode apoiá as mão no joei, e da próxima vez que zifio vié zifio traiz uma garrafa da aguardente que o pai vai dizê o nome, e traiz uma vela de sete dia tamém, que é pro santo recebê, e o pai vai dexá pra suncê essa guia aqui, que é pra protegê mizifio das querenga dos otro, e sempre que precisá zifio é só pegá na guia e rezá um pai-nosso e chamá pelo meu Santo Guerrero que ele vem fechá o corpo do zifio pa mode ninguém bulí cum zifio, então suncê leva essa guia e suncê num isquece di rezá pru meu santo, que agora o pai vai abri o trabaio e se o zifio merecê o pai vai abri os caminho do zifio pra iscrevê. axé.

sábado, 5 de abril de 2008

ah, como era bela a garoa que caía sobre Brasília! sob a luz do poste ela se desnudava, beijando as também nuas, calçadas frias, sedentas de companhia, brilhando amarelada nos pontos onde se a via; como era bela a garoa, como era boa! a garoa que caía, dançava com ternura, leve, sem valentia, sobre a cidade quase vazia, os carros passando, com seus faróis acelerados, curvas impróprias, sinais desobedecidos, e as asas abertas, braços abertos, com as palmas para cima; ela vinha serena, sobre a minha roupa, sobre a minha pele, sobre a minha cabeça, sobre tudo o que existia; há quanto tempo eu não a via! minha mente vazia, meus passos rápidos, ela caía leve, entregue à gravidade, entregue a mim que até então não sabia, o quão grandiosa, o quão companheira, no meio da madrugada, ela seria, tão doce, tão bela, caindo sobre mim, caia sobre todos, caia sobre o mundo, desabe em gotinhas, arrebate, prossiga, tão serena, desnuda, tão minha, [ninguém mais a via!] éramos eu e ela, éramos só nós, garoa fina, esta calçada fria, sua entrega incontida, sua nudez sem valentia, sua ternura sobre a cidade vazia, eu a via, ela havia, como era boa, como era bela, uma mera garoa, sobre Brasília!

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Palavras ao vento intoxicam moradores de uma localidade no interior do Estado

Cidade, UF - Os primeiros sintomas apresentados pelos moradores foram a incoerência verbal e a afasia. Ainda que seja uma patologia gramatical corriqueira, não foi facilmente identificada pelos médicos da localidade por apresentar fortes semelhanças com a linguagem coloquial regionalizada ou com o jargão classista. Provavelmente, a demora no diagnóstico foi determinante para o alastramento da doença. Em pouco tempo, não havia mais pontos, vírgulas, parenteses nem aspas. Palavras e mais palavras percorriam os canais de comunicação sem mensagens claras nem interlocutores definidos. Apenas horas depois do desastre instalado é que o Poder Público passou a intervir, mas já era tarde para muitos argumentos. Depoimentos recolhidos pelas autoridades apontam para a falta de pontuação e elementos coesivos na construção de períodos como provável causa do fenômeno. Sem se identificar, um homem aparentemente envolvido com o incidente reconheceu a negligência, mas se justifica: “Em português, não tem erro nem acerto. A linguagem é dinâmica e, além do mais, eu estava usufruindo da liberdade poética. É um direito meu, é inalienável! Minha intenção era expressar minha subjetividade, não transmitir idéias objetivas em estruturas lógicas e coerentes. Gato pá certo pouco fora de onde os ovos no entanto tem parece tinha céu de pedras sem caroço!!!!” Segundo especialistas, não será fácil restabelecer a normalidade, o mais importante será evitar mais contágio restringindo os diálogos àqueles que ainda conseguem organizar seu raciocínio logicamente. "Precisamos isolar os infectados. Fazer um tipo de quarentena. Talvez a leitura de uma gramática normativa ou até mesmo a aplicação de fórmulas matemáticas auxiliem no tratamento. No entanto, a cura é incerta e depende muito do tipo de idéias que infectaram o indivíduo causando a desarticulação verbal." declarou um dos membros da equipe de socorro.

sábado, 29 de março de 2008

"Compor um personagem é como fazer uma empada: tem que colocar recheio dentro e, por que não, até uma azeitona."

Wilson Caligaris, psicanalista grego

sexta-feira, 28 de março de 2008

"Em outras palavras: não se faz um omelete de santidade sem quebrar alguns ovos profanos."

Jiddhu Krishnamurti, na volta do programa de sucesso Cidade Alerta em março de 2008, comentando chacina de cristãos numa igreja do Quênia

quinta-feira, 20 de março de 2008


A laranja que sabia demais


Brasília - O Dr. Moreira (foto), do centro de pesquisa em inteligência vegetal (CPIV), pesquisa há anos as surpreendentes habilidades cognitivas de alguns vegetais superiores, particularmente da laranja-pêra. Inicialmente desacreditado por seus pares, com muita luta, superou as dificuldades naturais de quem ousa quebrar paradigmas, desafiar os limites. E os resultados estão aí. A cada dia, mais e mais jovens pesquisadores se interessam por esse assunto e o tabu vai ruindo. Não é por menos: os últimos resultados revelam uma atividade elétrica comparável à do cérebro de um primata em laranjas treinadas no CPIV. “Acho que em breve poderemos falar, quem sabe, em pensamentos abstratos numa berinjela adulta” diz o destemido cientista. Tais avanços alcançaram repercussão mundial em publicações de grande prestígio como a Revista de Biologia Criacionista e o Jornal Acadêmico de Ciência Eugenista do Vaticano. Segundo o Dr. Moreira, testes hipotéticos seriam capazes de mensurar a inteligência nesses vegetais se for vencida a barreira da expressão. “Não descarto inclusive a existência de algum tipo de linguagem primitiva, no entanto, essa linguagem seria individual, isto é, cada unidade de fruta ou planta teria sua própria língua incompartilhável já que esses sujeitos de análise não têm a habilidade de expressão. Mas essa limitação não pode nos impedir de reconhecer a genialidade de uma folha de alface. Ou seremos eternamente especistas obtusos?” desabafa o cátedra.

segunda-feira, 17 de março de 2008


ela não estava dormindo, tampouco estava acordada; era como se delirasse, os olhos fechados, consciente da realidade ao redor ao mesmo tempo em que se deixava levar pelo fluxo das sensações, seu gosto macio, a textura veludosa e fluida de um mundo que parecia estar apenas dentro de si mas que estava também ao meu redor, não sabendo eu se ela delirava de fato, ou se era eu o insano por crer tudo tão normal; ela permanecia deitada, no chão, o sorriso irremediável denunciando que o delírio era prazeroso, pois era prazeroso passear assim pelos planos mais inusitados, eu sentia também um pouco deste prazer ao me agachar para observá-la, sua blusa avermelhada e sua calça jeans serpenteando pelo chão, lentamente, ela se contorcia, e falava qualquer coisa ininteligível que saia em meio aos seus risos, mas sem parecer com isso estar atenta às minhas tentativas de estabelecer um diálogo, seja lá o que for, ela apenas deslizava no gozo das suas sensações enquanto eu tentava falar com ela, mirá-la nos olhos, enquanto eu agachado ali de olhos abertos a invejava e desejava ali mesmo possuí-la sem temor a Deus; mas em vez disso tomei-a pelos braços e tentei ajudá-la a se levantar, ela completamente desatenta e muito imersa na própria experiência, e enquanto eu tentava erguê-la ela se deixava estar e deixava o corpo cair ao sabor da gravidade, e eu a segurava pelos braços, e enquanto eu tentava erguê-la, ela ainda no chão, serpenteava, eu a vi claramente enfiar a mão direita dentro da calcinha, o sorriso menos discreto e mais ruidoso, ela sorria e gemia baixinho, e eu finalmente a levantei, ela sobre as palmas dos próprios pés, os olhos ainda fechados e ainda o sorriso, e eu a tomei nos meus braços segurando seu torso e sua cabeça e a beijei, um beijo lascivo, minha língua e a dela num tango alucinado e eu deliberadamente querendo abrir caminho na sua boca, mergulhar dentro dela, querendo ser ator daquele transe; mas ela por fim se incomodou, me repeliu, parecia ainda mais confusa, limpando o pó das roupas amarrotadas e olhando para o chão à sua volta com uma expressão insegura - me inspirou cuidados - de quem não sabia onde estava.


"vou embora", disse; e logo encontrou o rumo da porta, que estava aberta, e sem pensar muito passou por ela para o largo corredor. se deteve um instante e voltou-se, olhando pra mim:


"eu te amo, viu?", e nada mais disse; seguiu caminhando, rumo a algum lugar.


"eu sei", respondi, cabisbaixo, "eu te amo também".


ela seguia, bem adiante, sem olhar pra trás.

sexta-feira, 14 de março de 2008

"Tomai todos e bebei, este é o meu sangue".

Conde Drácula

segunda-feira, 10 de março de 2008


era impossível não se incomodar com o azul do céu e o canto dos passarinhos, pois a cidade era muito tranqüila, incrível como era mansa, quase escondida em seu próprio silêncio e na poeira das ruas; os cachorros olhavam para os lados e andavam devagar, meio atordoados, sem saber para onde ir; uma bicicleta passava, às vezes outra, eram muito parecidas, as bicicletas e os meninos, podiam sempre ser iguais; na praça, alguma senhora segurava uma criança pela mão; um velho enrolava pacientemente o seu cigarro, algum homem bem vestido caminhava levando embaixo do braço um livro preto, uma bíblia ou um caderno de notário, ou um diário roubado por uma janela qualquer. era mansa a cidade, mas um dia ele gritou. um lamento de dor rasgou o céu com atropelo, voou pelo espaço, as aves do campanário voaram, espantadas; depois de velho, ele gritava. sentava-se na calçada numa cadeira dura de madeira com forrado de couro, apoiava as palmas das mãos nos joelhos, a praça à sua frente, nenhuma árvore; aquele olhar era sempre tenso, assustado e assustador, o olhar fixado em algum ponto, nos olhos dos curiosos que passavam pela rua ou em algum ponto perdido do horizonte, as folhas esbranquiçadas dos olhos sugerindo cegueira ou alguma catarata, mas não eram cegos, em alguma coisa se fixavam esses olhos, e em nada mais se fixavam, como sempre o velho não dizia uma palavra, mudo como os mortos que mandou pra dentro da terra seca sabe-se lá há quantos anos, nunca se soube na cidade de outro que houvesse sido coveiro, nunca se soube de outro cemitério que não aquele, ao pé do morro, foi sempre aquele desde o começo da cidade, desde antes dela quando os viajantes adoentados iam ficando pelo caminho, cruzes que não marcavam posse, que aquela terra a ninguém pertencia, o cemitério sequer tinha muros, se expandiria indefinidamente morro acima e sabe Deus quando iria se encher, que aquela terra ninguém queria, nem os mortos, que acabavam por lá a contragosto, pra lá mandados à força, aos mortos não se pergunta sua opinião, a enxada batendo nas pedras, esfolando a terra dura, os dedos secos como a terra, os dedos sobre os joelhos, e essa mudez e esse olhar aflito que há algum tempo já estavam disseminando o desconforto no coração dos munícipes, os meninos freavam as bicicletas, as comadres prestavam atenção, eles olhavam para os olhos do velho, aqueles olhos esbranquiçados diziam alguma coisa, aquele olhar turvo trazia um sinal, uma mensagem grave, um presságio ao qual se devia atender, jamais se soube o quê, mas não apenas uma vez alguma beata se benzeu passando por aquela calçada, alguma mensagem desesperada saltava por aqueles olhos e ninguém era capaz de decifrá-la, entregai a Deus os desígnios do homem, e a aflição apenas crescia; o silêncio do velho crescia e se tornava insuportável, e desabava sepulcral sobre as mentes mais fracas, que nem dormir à noite conseguiam, mastigava o juízo dos ansiosos e dos culpados, açoitava os criminosos e os pecadores, que liam na sua barba desgrenhada a promessa do apocalipse, era tronco onde o escravo se açoitava com as próprias unhas, e quando a aflição cresceu demais e o silêncio cresceu demais e o desespero já era muito e nem mesmo os cachorros sabiam pra onde ir, e nem mesmo queriam ir a algum lugar mas não conseguiam, não podiam ficar parados, andavam atordoados pelas ruas, nesse dia, o velho gritou pela primeira vez, e seu grito era longo e rouco e angustiado, medo, incerteza, o mesmo olhar esbranquiçado, as rugas do rosto se contorciam, o olhar anuviado, um grito longo e desumano que preenchia todo o espaço, os pombos voaram da praça assustados e os cachorros finalmente ganiram e se contorceram nas esquinas mais longínquas; ao ouvir esse grito os próprios santos se benziam, e as beatas, e todos que buscavam alguma santidade, assimesmo os que não a buscavam, mais afoitos; as famílias na igreja num domingo qualquer perdiam a conta das ave-marias, os pêlos dos braços das mulheres se arrepiavam e os homens pegavam seus lenços húmidos, o padre desconcertado se perdia nas letras miúdas das escrituras, no meio da palavra, os coroinhas atrás do altar engasgavam e corriam por limpar o cálice sacro com as mangas das camisas, avermelhadas de vinho, o padre retomava o fio do pensamento, os homens guardavam os lenços, enquanto o velho deixava-se estar na sua cadeira, o velho imóvel, a cidade imóvel, cessava o grito e ele permanecia, as mãos nos joelhos, as rugas e olhos brancos, torturantes, e logo os pombos voltavam ao campanário, o silêncio voltava à praça, muito mais aterrador.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

"Tienes mucho que hacer, de modo que deja de compadecerte, toma agua y empieza a escribir", dijo Clara a su nieta.

Isabel Allende, La Casa de los Espíritus.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008


ao descer do carro eu me dava conta, vencido por mim mesmo e pelas palavras ásperas dela, de um drama pessoal sutil e mortífero. já se afirmou que nenhuma aventura, do corpo ou da alma, era impune; um tom bastante dramático para dizer o óbvio, reconheço, mas naquele momento as palabras martelavam com a força dos preceitos morais. sobre a bigorna, a lâmina ainda incandescente era martelada até quebrar-se, e uma vez quebrada meu equilíbrio se enfraqueceu e meu olhar não conseguia focar nada com nitidez; eu imaginava que o resultado daquele ato libertino era o destino cinzento e contraditório de não poder provar uma vez mais do fruto que eu conhecia tão bem, que já havia provado tantas vezes, para deleite da árvore que os trazia à vida, e cujas sementes eu disseminava onde estivesse. tormentos infindos! suprema ironia das linhas tortas da vida! tanto brilho, tantos sorrisos, tantos prazeres e palavras veludosas, que secaram e se converteram em poeira fina e congestionante que eu sentia cobrir meu espírito.... com que objetivo, além do momento presente? nenhum, talvez, e o presente já não era mais o mesmo. tanta certeza em caminhar altivo sobre as águas, suspenso pela tênue crença em sentimentos alheios e amores intensos e repentinos, certeza desmoronada uma vez findos os amores, do mesmo modo como começam, sem glória nem promessas. seriam as noites de paraíso apenas relampejos em meio à uma vida de martírios? eu agora navegava num tempestuoso capricho alheio, ingênuo, as velas do meu barco cobrindo um corpo de mulher nua na beira da praia, enquanto eu, lançado ao mar, engolia o sal amargo do caos onde me lancei por abrir mão do meu leme e da minha vontade. se grande é o crime, tão grande é a pena, e o tempo apostado neste jogo onde se engana a si mesmo para enganar o mundo cobraria os seus juros: o sono confortável de outrora foi coberto com a mesma lama com que a soberba imaginava soterrar os desvalidos [ah! a vida!]; o olhar foi traído com a crueldade de se encontrar à beira do caminho um falso reflexo e o antônimo daquilo que se buscava. afaste-se, maldição! mesmo com toda a dificuldade, ainda é possível distingüir um fiozinho de luz cruzando os céus, a lanterna do farol da esperança, sinalizando os rochedos do ego. nadávamos nestes rochedos quando a maré subia, saltávamos como os clavadistas nas fendas das rochas desafiando aquilo que chamamos de vida, aquilo que chamamos de eu. ríamos muito neste tempo, muito mais; hoje o teu riso é de esquecimento e inércia, o que a mim se apresenta como um inegável escárnio frente ao passado; hoje os rochedos são sérias ameaças ao casco de uma nave sem velas, que pode ficar em pedaços como o porto de onde partiu - a ilha onde estávamos já não aparece nas cartas. ao descer do carro eu senti o vento gelado e as vagas das ondas que lambiam o convés, e não fosse o farol - que sinalizava alguma esperança além do meu ego, além do teu ego, além das marés de um passado incompleto - nada existiria. nas trevas não existo eu, não existe tu, nem mesmo nós, só existem as luzes do farol e das estrelas, que a tudo testemunham.
"Hoje é um novo dia de um novo Tempo que começou".

Nostradamus

terça-feira, 15 de janeiro de 2008


fica aqui registrada a alegria das velhinhas de Brodowski (SP), com a notícia da devolução das obras de arte roubadas no masp. finalmente as cansativas ladainhas e rosários puderam ser deixados de lado sem remorço. o poder público, por sua vez, já antecipou o carnaval. as velhinhas agradecem.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008


do outro lado do estreito corredor, na fileira em frente à minha, uma garota lia Memorias de Mis Putas Tristes. página oitenta e sete, de uma edição pequena, de bolso. papel de jornal, pensei, ironizando a mim mesmo: sempre gostei de livros de bolso. memories of my melancholic whores: o título denunciava o livro em inglês. a leitora usava óculos. tinha olhos escuros, que eu podia ver quando ela se virava, mesmo por trás das lentes embaçadas dos óculos de acetato. pele morena, cabelos bem pretos, brilhantes, amarrados em uma única trança presa com um laço verde. rosto redondo, nariz proeminente e triangular. traços que, em meio segundo de análise, me pareceram bastante indígenas. que era hispanohablante, não parecia haver dúvida, eu ouvia baixinho seus comentários com a pessoa sentada ao seu lado. se era mexicana, ou talvez hondureña, ou até mesmo equatoriana, não saberia distinguir. mas isso eu não me perguntava; interessava-me sim saber a razão pela qual ela lia a tradução para o inglês de uma obra composta em sua língua materna. estavam livres meu julgamento e minhas livres associações, e decidi que não era perda de tempo pensar nisso. se ela buscava praticar a língua de Wilde e Hemingway, me parecia mais próprio fazê-lo lendo algum autor anglófono, alguém que tivesse o inglês por matéria-prima de seu pensamento, e não o forçado reducionismo de uma tradução. nunca li Machado de Assis, por exemplo, em outra língua que não o português, e se o fizesse seria apenas com a curiosidade de analisar sua tradução. talvez fosse esta a motivação da garota indígena naquele momento. talvez eu devesse ler Machado de Assis ou García Marquez em inglês? bobagem. ela ajustou os óculos, virou a página, oitenta e oito; insistia comigo que era possível. sigo cético.

já passava de uma hora da manhã, e os carrinhos começavam a circular pelos corredores. eu aguardava sem ansiedade pelo jantar. a bandeja que me coube foi entregue com um sorriso, prontamente retribuído: a comissária me havia mirado nos olhos. o parzinho formado pelo garfo de metal e a faca de plástico me fez pensar nos risíveis paradoxos da segurança em vôo, com seus assentos flutuantes, máscaras de oxigênio e limites para o transporte de líquidos na bagagem de mão. a digressão só não foi mais longa porque neste mesmo instante, na poltrona ao lado, a menina fechava o livro. agradeceu à comissária e disse que aceitaria apenas um copo d'água, sin hielo. bebia vagarosamente, aparentando estar perdida em pensamentos. tirou os sapatos, levou a mão direita ao queixo, e o seu silêncio remoía algo que eu não tinha como adivinhar. Gabo seguia em seu colo, em inglês; a água decia pela sua garganta, movimentos musculares involuntários; minha faca de plástico literalmente suava para cortar um filé fumegante; lá fora a temperatura permanecia em confortáveis quarenta e oito graus negativos; a aeromoça perguntava se eu queria café, e me assustei com a xícara, que parecia uma tigela de cereal. em tudo isso minha mente navegava, a quarenta mil pés de altura, perdida nestas considerações, e eu mastigava o filé mecanicamente, criando distrações para me esquecer de um imaginário medo de voar.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

haikais avulsos

I

a paz é uma sanção
a guerra é uma dalila

II

todo conceito impõe limite
todo limite é condição
para, do conceito, a destruição

III

o presente: um trampolim
onde o que ainda não é
vai de encontro ao seu fim

IV

a vida é bela
a vida é bala
na favela

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

“Deixei a chave do carro atrás da cômoda da sala, aquela que tem uma imagem de uma santa, nossa senhora, uma imagem sacra dessas qualquer. O IPVA tá vencido, por isso olho aberto com o DETRAN. Ainda faltam umas 6 parcelas do carro. O vencimento é dia 8. Não esqueçam que eu morri dia 21 de dezembro, quer dizer, a morte cerebral. No atestado de óbito tá escrito 26 porque morri tarde a noite na sexta. Como era fim de semana antes do Natal a turma do plantão deixou pra mexer com papelada só na volta do feriado na quarta. Ainda não encontrei com Jesus “pessoalmente”, mas, pelo que se comenta por aqui, ele é bem atencioso e recebe todo mundo com o maior carinho. Esse ano só dá Flu! Saudações tricolores.”

Mensagem recebido do espírito desencarnado angelo_bbruger37@email.com (os dois b’s e o underline são pra distinguir de outros Ângelos Brugers que fizeram a passagem antes deste. A anterioridade temporal dá preferência no uso do nome também nos domínios astrais)

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

the beast speaks

nossa equipe de reportagem entrevista Aleister Crowley no reveillon do Rio

renomado magista, sintetizador da lei de thelema, excêntrico aristocrata considerado um embuste pelos seus opositores, Aleister Crowley era um dos dois milhões de espíritos que experimentavam na noite passada a transposição de outro calendário solar, na praia de Copacabana. nossa equipe interagiu com o 666 nesta madrugada, em uma festa privada na zona portuária do Rio, e ouviu a sua avaliação da festa da virada em terras brasileiras.

leia tudo e muito mais na edição de amanhã