sexta-feira, 11 de janeiro de 2008


do outro lado do estreito corredor, na fileira em frente à minha, uma garota lia Memorias de Mis Putas Tristes. página oitenta e sete, de uma edição pequena, de bolso. papel de jornal, pensei, ironizando a mim mesmo: sempre gostei de livros de bolso. memories of my melancholic whores: o título denunciava o livro em inglês. a leitora usava óculos. tinha olhos escuros, que eu podia ver quando ela se virava, mesmo por trás das lentes embaçadas dos óculos de acetato. pele morena, cabelos bem pretos, brilhantes, amarrados em uma única trança presa com um laço verde. rosto redondo, nariz proeminente e triangular. traços que, em meio segundo de análise, me pareceram bastante indígenas. que era hispanohablante, não parecia haver dúvida, eu ouvia baixinho seus comentários com a pessoa sentada ao seu lado. se era mexicana, ou talvez hondureña, ou até mesmo equatoriana, não saberia distinguir. mas isso eu não me perguntava; interessava-me sim saber a razão pela qual ela lia a tradução para o inglês de uma obra composta em sua língua materna. estavam livres meu julgamento e minhas livres associações, e decidi que não era perda de tempo pensar nisso. se ela buscava praticar a língua de Wilde e Hemingway, me parecia mais próprio fazê-lo lendo algum autor anglófono, alguém que tivesse o inglês por matéria-prima de seu pensamento, e não o forçado reducionismo de uma tradução. nunca li Machado de Assis, por exemplo, em outra língua que não o português, e se o fizesse seria apenas com a curiosidade de analisar sua tradução. talvez fosse esta a motivação da garota indígena naquele momento. talvez eu devesse ler Machado de Assis ou García Marquez em inglês? bobagem. ela ajustou os óculos, virou a página, oitenta e oito; insistia comigo que era possível. sigo cético.

já passava de uma hora da manhã, e os carrinhos começavam a circular pelos corredores. eu aguardava sem ansiedade pelo jantar. a bandeja que me coube foi entregue com um sorriso, prontamente retribuído: a comissária me havia mirado nos olhos. o parzinho formado pelo garfo de metal e a faca de plástico me fez pensar nos risíveis paradoxos da segurança em vôo, com seus assentos flutuantes, máscaras de oxigênio e limites para o transporte de líquidos na bagagem de mão. a digressão só não foi mais longa porque neste mesmo instante, na poltrona ao lado, a menina fechava o livro. agradeceu à comissária e disse que aceitaria apenas um copo d'água, sin hielo. bebia vagarosamente, aparentando estar perdida em pensamentos. tirou os sapatos, levou a mão direita ao queixo, e o seu silêncio remoía algo que eu não tinha como adivinhar. Gabo seguia em seu colo, em inglês; a água decia pela sua garganta, movimentos musculares involuntários; minha faca de plástico literalmente suava para cortar um filé fumegante; lá fora a temperatura permanecia em confortáveis quarenta e oito graus negativos; a aeromoça perguntava se eu queria café, e me assustei com a xícara, que parecia uma tigela de cereal. em tudo isso minha mente navegava, a quarenta mil pés de altura, perdida nestas considerações, e eu mastigava o filé mecanicamente, criando distrações para me esquecer de um imaginário medo de voar.

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