sábado, 29 de março de 2008

"Compor um personagem é como fazer uma empada: tem que colocar recheio dentro e, por que não, até uma azeitona."

Wilson Caligaris, psicanalista grego

sexta-feira, 28 de março de 2008

"Em outras palavras: não se faz um omelete de santidade sem quebrar alguns ovos profanos."

Jiddhu Krishnamurti, na volta do programa de sucesso Cidade Alerta em março de 2008, comentando chacina de cristãos numa igreja do Quênia

quinta-feira, 20 de março de 2008


A laranja que sabia demais


Brasília - O Dr. Moreira (foto), do centro de pesquisa em inteligência vegetal (CPIV), pesquisa há anos as surpreendentes habilidades cognitivas de alguns vegetais superiores, particularmente da laranja-pêra. Inicialmente desacreditado por seus pares, com muita luta, superou as dificuldades naturais de quem ousa quebrar paradigmas, desafiar os limites. E os resultados estão aí. A cada dia, mais e mais jovens pesquisadores se interessam por esse assunto e o tabu vai ruindo. Não é por menos: os últimos resultados revelam uma atividade elétrica comparável à do cérebro de um primata em laranjas treinadas no CPIV. “Acho que em breve poderemos falar, quem sabe, em pensamentos abstratos numa berinjela adulta” diz o destemido cientista. Tais avanços alcançaram repercussão mundial em publicações de grande prestígio como a Revista de Biologia Criacionista e o Jornal Acadêmico de Ciência Eugenista do Vaticano. Segundo o Dr. Moreira, testes hipotéticos seriam capazes de mensurar a inteligência nesses vegetais se for vencida a barreira da expressão. “Não descarto inclusive a existência de algum tipo de linguagem primitiva, no entanto, essa linguagem seria individual, isto é, cada unidade de fruta ou planta teria sua própria língua incompartilhável já que esses sujeitos de análise não têm a habilidade de expressão. Mas essa limitação não pode nos impedir de reconhecer a genialidade de uma folha de alface. Ou seremos eternamente especistas obtusos?” desabafa o cátedra.

segunda-feira, 17 de março de 2008


ela não estava dormindo, tampouco estava acordada; era como se delirasse, os olhos fechados, consciente da realidade ao redor ao mesmo tempo em que se deixava levar pelo fluxo das sensações, seu gosto macio, a textura veludosa e fluida de um mundo que parecia estar apenas dentro de si mas que estava também ao meu redor, não sabendo eu se ela delirava de fato, ou se era eu o insano por crer tudo tão normal; ela permanecia deitada, no chão, o sorriso irremediável denunciando que o delírio era prazeroso, pois era prazeroso passear assim pelos planos mais inusitados, eu sentia também um pouco deste prazer ao me agachar para observá-la, sua blusa avermelhada e sua calça jeans serpenteando pelo chão, lentamente, ela se contorcia, e falava qualquer coisa ininteligível que saia em meio aos seus risos, mas sem parecer com isso estar atenta às minhas tentativas de estabelecer um diálogo, seja lá o que for, ela apenas deslizava no gozo das suas sensações enquanto eu tentava falar com ela, mirá-la nos olhos, enquanto eu agachado ali de olhos abertos a invejava e desejava ali mesmo possuí-la sem temor a Deus; mas em vez disso tomei-a pelos braços e tentei ajudá-la a se levantar, ela completamente desatenta e muito imersa na própria experiência, e enquanto eu tentava erguê-la ela se deixava estar e deixava o corpo cair ao sabor da gravidade, e eu a segurava pelos braços, e enquanto eu tentava erguê-la, ela ainda no chão, serpenteava, eu a vi claramente enfiar a mão direita dentro da calcinha, o sorriso menos discreto e mais ruidoso, ela sorria e gemia baixinho, e eu finalmente a levantei, ela sobre as palmas dos próprios pés, os olhos ainda fechados e ainda o sorriso, e eu a tomei nos meus braços segurando seu torso e sua cabeça e a beijei, um beijo lascivo, minha língua e a dela num tango alucinado e eu deliberadamente querendo abrir caminho na sua boca, mergulhar dentro dela, querendo ser ator daquele transe; mas ela por fim se incomodou, me repeliu, parecia ainda mais confusa, limpando o pó das roupas amarrotadas e olhando para o chão à sua volta com uma expressão insegura - me inspirou cuidados - de quem não sabia onde estava.


"vou embora", disse; e logo encontrou o rumo da porta, que estava aberta, e sem pensar muito passou por ela para o largo corredor. se deteve um instante e voltou-se, olhando pra mim:


"eu te amo, viu?", e nada mais disse; seguiu caminhando, rumo a algum lugar.


"eu sei", respondi, cabisbaixo, "eu te amo também".


ela seguia, bem adiante, sem olhar pra trás.

sexta-feira, 14 de março de 2008

"Tomai todos e bebei, este é o meu sangue".

Conde Drácula

segunda-feira, 10 de março de 2008


era impossível não se incomodar com o azul do céu e o canto dos passarinhos, pois a cidade era muito tranqüila, incrível como era mansa, quase escondida em seu próprio silêncio e na poeira das ruas; os cachorros olhavam para os lados e andavam devagar, meio atordoados, sem saber para onde ir; uma bicicleta passava, às vezes outra, eram muito parecidas, as bicicletas e os meninos, podiam sempre ser iguais; na praça, alguma senhora segurava uma criança pela mão; um velho enrolava pacientemente o seu cigarro, algum homem bem vestido caminhava levando embaixo do braço um livro preto, uma bíblia ou um caderno de notário, ou um diário roubado por uma janela qualquer. era mansa a cidade, mas um dia ele gritou. um lamento de dor rasgou o céu com atropelo, voou pelo espaço, as aves do campanário voaram, espantadas; depois de velho, ele gritava. sentava-se na calçada numa cadeira dura de madeira com forrado de couro, apoiava as palmas das mãos nos joelhos, a praça à sua frente, nenhuma árvore; aquele olhar era sempre tenso, assustado e assustador, o olhar fixado em algum ponto, nos olhos dos curiosos que passavam pela rua ou em algum ponto perdido do horizonte, as folhas esbranquiçadas dos olhos sugerindo cegueira ou alguma catarata, mas não eram cegos, em alguma coisa se fixavam esses olhos, e em nada mais se fixavam, como sempre o velho não dizia uma palavra, mudo como os mortos que mandou pra dentro da terra seca sabe-se lá há quantos anos, nunca se soube na cidade de outro que houvesse sido coveiro, nunca se soube de outro cemitério que não aquele, ao pé do morro, foi sempre aquele desde o começo da cidade, desde antes dela quando os viajantes adoentados iam ficando pelo caminho, cruzes que não marcavam posse, que aquela terra a ninguém pertencia, o cemitério sequer tinha muros, se expandiria indefinidamente morro acima e sabe Deus quando iria se encher, que aquela terra ninguém queria, nem os mortos, que acabavam por lá a contragosto, pra lá mandados à força, aos mortos não se pergunta sua opinião, a enxada batendo nas pedras, esfolando a terra dura, os dedos secos como a terra, os dedos sobre os joelhos, e essa mudez e esse olhar aflito que há algum tempo já estavam disseminando o desconforto no coração dos munícipes, os meninos freavam as bicicletas, as comadres prestavam atenção, eles olhavam para os olhos do velho, aqueles olhos esbranquiçados diziam alguma coisa, aquele olhar turvo trazia um sinal, uma mensagem grave, um presságio ao qual se devia atender, jamais se soube o quê, mas não apenas uma vez alguma beata se benzeu passando por aquela calçada, alguma mensagem desesperada saltava por aqueles olhos e ninguém era capaz de decifrá-la, entregai a Deus os desígnios do homem, e a aflição apenas crescia; o silêncio do velho crescia e se tornava insuportável, e desabava sepulcral sobre as mentes mais fracas, que nem dormir à noite conseguiam, mastigava o juízo dos ansiosos e dos culpados, açoitava os criminosos e os pecadores, que liam na sua barba desgrenhada a promessa do apocalipse, era tronco onde o escravo se açoitava com as próprias unhas, e quando a aflição cresceu demais e o silêncio cresceu demais e o desespero já era muito e nem mesmo os cachorros sabiam pra onde ir, e nem mesmo queriam ir a algum lugar mas não conseguiam, não podiam ficar parados, andavam atordoados pelas ruas, nesse dia, o velho gritou pela primeira vez, e seu grito era longo e rouco e angustiado, medo, incerteza, o mesmo olhar esbranquiçado, as rugas do rosto se contorciam, o olhar anuviado, um grito longo e desumano que preenchia todo o espaço, os pombos voaram da praça assustados e os cachorros finalmente ganiram e se contorceram nas esquinas mais longínquas; ao ouvir esse grito os próprios santos se benziam, e as beatas, e todos que buscavam alguma santidade, assimesmo os que não a buscavam, mais afoitos; as famílias na igreja num domingo qualquer perdiam a conta das ave-marias, os pêlos dos braços das mulheres se arrepiavam e os homens pegavam seus lenços húmidos, o padre desconcertado se perdia nas letras miúdas das escrituras, no meio da palavra, os coroinhas atrás do altar engasgavam e corriam por limpar o cálice sacro com as mangas das camisas, avermelhadas de vinho, o padre retomava o fio do pensamento, os homens guardavam os lenços, enquanto o velho deixava-se estar na sua cadeira, o velho imóvel, a cidade imóvel, cessava o grito e ele permanecia, as mãos nos joelhos, as rugas e olhos brancos, torturantes, e logo os pombos voltavam ao campanário, o silêncio voltava à praça, muito mais aterrador.