quinta-feira, 29 de novembro de 2007


"Perde tudo e ainda toma um tapa na cara, amiguinhooo! Cada um com seus problemas!"

Palhaço Gozo, porta-voz da juventude, durante a brincadeira da Rolentrando

Jorro de Sabedoria

Gente, acima de tudo, querendo ou não, a gente tem que falar de gente, seres humanos. Somos todos especiais, cada um tem alguma coisa única pra contribuir pra uma sociedade melhor. Basta saber lapidar esse diamante bruto dentro de cada um de nós. Você quer ser parte do problema ou da solução? Pense nisso. Quem nunca errou que atire a primeira pedra... ou é “pecou”? Enfim, o que importa é a gente sempre ter cuidado pra não julgar o outro porque toda vez que tem um dedo apontando pro outro, têm três outros apontando pra você. É feio julgar. Feio, feio, feio. Trate os outros como quer ser tratado, não é mesmo? Ouvir sempre mais do que falar. Ah, a assertividade. Essa dádiva! Procuremos sempre sermos assertivos. Sem agressividade, sabendo expor nossas idéias com firmeza, com clareza sem machucar o outro. É isso que importa. Acima de tudo ser feliz. Devemos olhar pra frente. O passado já foi. Viver o presente é o que vale. O futuro a Deus pertence. Não sei nem se estarei aqui amanhã. Viver cada instante como se fosse o último. Carpe diem. Valorizar quem está do seu lado nas horas difíceis: esses são os verdadeiros amigos. Sobretudo, eu odeio a falsidade. Não acho que alguém possa conquistar alguma coisa nessa vida passando por cima dos outros, mentindo, sendo falso. Eu, pessoalmente, sou muito verdadeiro. Gosto de rir, de conversar com os amigos. Essas pessoas que só ficam falando mal dos outros me enojam. Não gosto. Acho que eu tenho que cuidar da minha vida, sabe? Ser feliz. Agradecer todo dia. Só peço saúde. O resto eu corro atrás. É isso o que eu tenho a dizer. Espero que todos tenham gostado. Desculpa se magoei alguém, não era essa minha intenção. Agradeço a atenção de todos. Boa noite. Vocês foram ótimos. Até amanhã nessa mesma bat-hora, nesse mesmo bat-canal. Huahuahua! ;)


Beijos miguxos.


Texto dedicado ao Paulo Coelho e às pessoas que chamam umas às outras por apelidos carinhosos

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Realidade Objetiva

"(...) devemos começar distinguindo as condições que uma proposição deve satisfazer para que possamos considerá-la como sendo sobre um objeto físico no mundo externo. Há duas condições relevantes a serem aqui satisfeitas:

(i) a determinação do que seja o objeto físico em bases conceituais,

(ii) a atribuição de existência ao objeto físico conceitualmente determinado.

(...) O que tenho em mente ao dizer

1. "Há uma garça no meu quintal"

pode ser fenomenalmente traduzido, de maneira que satisfaça as condições (i) e (ii), como:

2. Está sendo dada uma garantida possibilidade de que um percipiente qualquer, em certas circunstâncias (que envolvem a descrição do meu quintal, a especificação do momento do proferimento, etc.), tenha a experiência visual de partes de um multicomplexo de sensações do tipo garça em partes do multicomplexo de sensações do tipo meu quintal."

COSTA, Cláudio. Uma Introdução Contemporânea à Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (pp. 148-149)

Logo, a minha morte poderia ser descrita em termos fenomenológicos como o fim da garantia de experienciabilidade a um percipiente qualquer de um multicomplexo de sensações do tipo eu.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007




a catarse
prima da apócope
hermana do êxtase
sobrinha da apóstase



imagem: Skrik (1893), Edward Munch.


Bom-dia

Senti uma dor no peito, hoje. Dor que provavelmente desejei muito. Há tempos questionava minha capacidade de me apaixonar. Me julgava um homeme frio, deficiente emocionalmente. Pronto, aí está a prova de que estou vivo: chorei por amor, aliás, chorei pela falta dele. Quando veio o impacto das palavras caladas e dos toques calculados, fiquei perplexo, sem reação, silencioso. Cheguei em casa pressentindo que uma tempestade se formava dentro de mim. Ainda assim dormi surpreendentemente bem, achei isso muito bom. Depois, acordei vazio. "E agora?". E agora, os primeiros sintomas de quem sofre por amor vieram. Olhei pra comida e nada me apeteceu, nem mesmo uma fruta. Tudo parecia excessivamente denso e pesado pra aquele momento. Logicamente, as pobres bananas e maçãs não tinham qualquer culpa. Eu é que estava com um sentimento inexplicavelmente verdadeiro. Dei bom-dia ao porteiro. Entrei no carro e escolhi cuidadosamente minha trilha sonora: 89,9 FM. Acho que era um bolero que tocava quando tive coragem de gritar. Gritei. Depois do grito, consegui respirar profundamente. Parecia que faziam séculos que não enchia meu pulmão com sua capacidade máxima, mas logo o ar escapou. Isso me entristeceu. É, isso mesmo. Como é que subitamente nos tornamos tão piegas? Antes de estacionar, ainda tive tempo de buzinar pra um maluco que manobrou imprudentemente. Mas o grande momento mesmo estava por vir. Entrei na minha sala de trabalho, repousei minha pasta sobre a mesa, olhei pro monitor do computador e me sentei. Primeiro vieram soluços, cada vez mais intensos e longos, depois o tremor dos lábios. A essa altura, meus olhos já estavam semi-cerrados e meu cenho decisivamente franzido. Gemi com cuidado pra não chamar atenção. Fui me entregando aos poucos, resistindo o quanto pude. Finalmente, me entreguei e, só então, vieram as lágrimas lavar meus olhos. Enquanto chorava, emitia alguns grunhidos que podem soar como um profundo lamento de auto-piedade, mas acho que era outra coisa. Talvez apenas fosse o desejo de desfrutar um pouco mais da catarse. Havia raiva. Raiva de mim por ter me deixado agredir, por não ter me defendido. Raiva dela por suas grosserias, pela inexistência de diálogo. "Uma pessoa pode escrever poesia tão linda, cartas de amor pra si mesmo tão autênticas a ponto de não precisar compartilhar seus sentimentos por meio de palavras?" "Não sei." "Vivi a fantasia de conhecer alguém." Logo, logo meus olhos pararam de lacrimejar. Não tive tempo de me olhar no espelho, mas suponho que meu rosto deve guardar marcas do choro, ao menos, é o pouco que posso deduzir do meu reflexo na tela do computador. Durante o dia que ainda está começando, devo transitar entre a auto-piedade e a alegre artificialidade. Em algum momento, voltará a quietude e a sensação de que o que eu vivi foi muito mais aquilo que registrei nessas palavras do que esse sofrimento pungente. Quando tiver perdido o rastro dessa dor.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007



ALELUIA!
Ministério da Religião deve sair ainda essa semana


Na noite desta terça-feira, após intensas negociações com a base aliada, o Presidente fechou um acordo histórico: será criado o ministério extraordinário da religião que ficará a cargo do PRL. Ainda não foi definido oficialmente o nome do titular da pasta, mas as especulações apontam pra dois fortes candidatos: Josimar e Mário. Nenhum dos dois políticos tem ligação histórica com movimentos religiosos, ainda que sejam ambos batizados pela Igreja Católica. Tampouco são atualmente filiados ao PRL. No entanto, segundo o Presidente, nada disso seria empecilho para uma possível nomeação, já que o processo de mudança de partido é simples e indolor e a pouca familiaridade com o tema pode ser até positiva pela isenção em matérias polêmicas. “Veja bem, eu mesmo já fui coroinha sem ter freqüentado sequer uma aula de catequese. E, dizia o padre Donato, fui o melhor coroinha que ele já teve” confessou o chefe de Estado. Para as lideranças religiosas, a criação de um ministério é pouco, mas já é um importante passo em direção ao estabelecimento de uma ordem espiritual superior, de acordo com os desígnios do Criador. “O laicismo é uma perspectiva ultrapassada. Vejam o exemplo de sucesso do Irã. É uma potência regional!” disse o presidente da CNBB.
isto não é um cachimbo. e ponto final.

Magritte foi um dos primeiros seres da espécie homo sapiens sapiens a se dar conta de que as aparências enganam. isto já no Anno da Graça do Nosso Senhor de 1928, o que para a espécie como um todo significou um considerável avanço. o pintor almejava, com tal revelação, provocar a inconformidade e a revolta dos indivíduos contra a manipulação da realidade e a condensação da massa popular dentro de um conceito de real que não condiz com o mundo à sua volta, e sim com os interesses das camadas dominantes e criadoras desta realidade.

curiosamente, Magritte não foi torturado e morto, nem pelos algozes da Santa Inquisição, nem por agentes de nenhum regime ditatorial/fascista. estudiosos acreditam que isto se deve porque a mensagem do pintor não foi de fato compreendida, à época. se a revolução psico-social almejada por Magritte não aconteceu, por outro lado sua vida não foi ameaçada, o que permitiu a ele a produção de mais outras tantas telas contestatórias.


imagem: La trahison des images (1928-29), René Magritte.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Rezo

Eu não acredito na existência de Deus. Apenas atribuo esse nome ao conjunto imaginário e intangível de fenômenos simultâneos e passados necessários para me manter vivo.
Por gostar de exisitr e ter a permanente sensação de ser a mesma pessoa continuamente existindo, ainda que desconheça a inexistência, acho justo reconhecer o trabalho do universo pra me preservar vivo.
Agradeço por ter terminações nervosas para sentir a dor e a amargura, o doce e o prazer.
Agradeço pelo contraste das dualidades.
Agradeço pelas faculdades mentais que me permitem desenvolver a idéia da unicidade da vida universal.
Agradeço pelas artimanhas da mente que me permitem ter convicções essenciais ao meu bem-estar ainda que não se sustentem diante de uma refutação rigorosa.
Agradeço pela fantasia de achar que é bom o que sou e possuo, mesmo ignorando tudo que seja alheio a mim.

Amém.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

salve o pendão da esperança!

sabemos que o mundo dá voltas, ainda mais depois da décima cerveja, e qualquer conversa de bar retorna invariavelmente ao tema já batido do efeito borboleta. no episódio de hoje, vamos relembrar a velha história de como os espirros de Auguste Comte, na França, acabaram se transformando numa bandeira nacional republicana no Brasil.

além de ter cunhado o termo “sociologia”, sem necessariamente recheá-lo, e ter sido um dos primeiros ocidentais a afirmar que “tudo é relativo”, Comte e os espirros da gripe espanhola que o levariam à morte deixaram no Novo Mundo uma marca indelével: seu Positivismo, desenhado às pressas em meio aos espasmos e ao suor frio e às alucinações da febre, gerou no Brasil nada menos que a Igreja Positivista, organização devotada a provar que esta terra onde se plantando tudo dá fazia vicejar os mais elevados ideais político-espirituais do Velho Mundo. a Igreja Positivista era antiescravista, antitabagista e antiimperialista.

vale ressaltar que naqueles tempos áureos do Império Tupinambá, a generosidade dos nativos era demonstrada com a realização de pomposos bailes aos visitantes estrangeiros. não poderia ser diferente quando da chegada ao porto do Rio da embarcação chilena Almirante Cochrane, carregada de marinheiros criollos sedentos por provar das delícias tropicais. por ordem do Imperador, foi preparada uma onerosa festa que entrou para a história como o Baile da Ilha Fiscal. a hospitalidade tupinambá foi derramada sobre os visitantes em forma de vinhos e iguarias finas, assim como as roupas íntimas de muitas das damas da Corte, encontradas no dia seguinte pelas mulatas que chegavam para a faxina.

é neste ponto da história que entra em cena nosso herói, Raimundo Teixeira Mendes, o escultor do oh lindo pendão da esperança. Teixeira Mendes era nada menos que pastor da Igreja Positivista, com um invejável networking entre os visionários militares que defendiam a derrubada do Império. totalmente quebrada pelo Baile da Ilha Fiscal, a monarquia não ofereceu resistência aos golpistas, e os libertadores proclamaram a República Federativa do Brasil, com um baile igualmente pomposo, embora sabiamente menos divulgado: o Baile do Morro da Providência, precursor dos bailes dos morros contemporâneos.

Teixeira Mendes foi encarregado do desenho da nova bandeira nacional, na qual depositou todo o seu conhecimento maçônico-positivista. seu desenho é quase o mesmo da bandeira atual, exceto por um detalhe: o logo original “Amor, Ordem e Progresso” foi reduzido para “Ordem e Progresso” por decisão do Pai da República, Marechal Deodoro da Fonseca, por achar que “de amor, o povo faceiro desta terra já se encontra suficientemente servido”.

e assim, meus amiguinhos, se encerra esta bela história. a flâmula alviverde de Teixeira Mendes segue incólume aos dias de hoje, enchendo de orgulho os filhos da Pátria Mãe Gentil que enchem o peito para louvar, neste 19 de novembro, sua prodigiosa obra.



Respiro

Num pedaço de terra vermelha,
Cansado, o vento chega,
“Ah, Brasília...”
Balbucia devagar
Pra movimentar a poeira,
resiste, insiste em soprar.
"Invadam o México imediatamente! Não quero um terrorista cucaracha respirando depois da gente entupir aquele país de merda com bombas tóxicas. Vermes... Condee, você não é mexicana, não é? Você percebe que é só uma brincadeira, certo? Ahhhh, viva a democraciaaaaa!!!!"


Presidente Bush, 3:23 am, 1 garrafa e meia de conhaque, Kelly's Irish Times Pub, 300 metros da Casa Branca

"Ouço bastante Pink Floyd pra me acalmar. Mas em dias de homília, só mesmo um Lexotan."

Papa CXVI

domingo, 18 de novembro de 2007

ville-lumière

Paris é a capital do amor. ah, o amor.... o amor está em tudo. em todos os lugares, em todos os corações. nas luzes, nos cafés, nos monumentos, nas ruas estreitas - ainda que sombrias, sempre aureamente coloridas por tons aquarelados. ó ventura. ó tentações. não por acaso, Paris é a cidade onde os grandes gênios das letras e artes amanheceram em amnésicos saraus e contraíram todas as doenças venéreas do mundo.

sábado, 17 de novembro de 2007

"Vou à Universidade pra exercitar minha intolerância".

Jabuticaba, ator do palco elizabetano de São João Del Rey (séc. XVII)

tira a calcinha sua piranha. agora!

o tapa estalou no rosto dela, que caiu rindo na cama, o corpo lascivo completamente solto. ela ria e passava suavemente as costas da mão no rosto quente e avermelhado.

não tiro não.... mmmmm não tiro.... não tiro!!

vagabunda!. outro tapa. ela se sentia realizada. ele dessa vez não teve paciência. puxou-a por uma das pernas como se puxa um bezerro dando trabalho pra nascer. ai! de outro puxão, a calcinha arrebentou e foi jogada pra longe. vem cá sua vagabunda. piranha! ela se debatia enquanto ele a apertava nos dois braços macios, deixando marcas, mordendo seu pescoço e lambendo suas orelhas como um animal. me larga! me largaaaaaa! ela gritava, primeiro com raiva, depois com mais raiva, rangendo os dentes e franzindo as sobrancelhas, depois da primeira mordida um grito mais furioso, depois da quarta ou quinta já um gemido rouco, de fêmea no cio, ronronando, rosnando, suas mãos também apertando os braços dele, que a pressionava contra o colchão.

vai continuar resistindo, né?
vou.... ela apenas sussurrava, cínica, aquele mesmo sorriso autoconfiante no canto dos lábios. vou.... mmm
vai continuar resistindo??!

vou!! ela gritou e olhou nos olhos dele, fingindo ódio, fingindo desobediência, implorando por um castigo, me castiga, vai, me castiga seu filho da puta. então resiste, sua cachorra. resiste vagabunda! eu vou te comer assim mesmo. vai, reclama, sua piranhinha.... sua puta!, um tapa em cheio no rosto dela, briga sua putinha, briga vagabunda!, ele aperta as pernas dela, outro tapa sonoro, ela com o rosto vermelho, toda descabelada, ainda se debatendo, resiste agora, sua língua roçando os mamilos rígidos, sua boca chupando mais forte os seios arrepiados, briga agora, outro tapa, ela respira mais fundo, o coração acelerado, solta os braços dele e segura mais forte no colchão, uma das mãos apertando a lateral do colchão, a outra agarrando firme o lençol amarrotado, e agora hein sua vadia.... hein sua piranha.... gostosa.... seu ventre se contraindo, isso, gostosa.... tesuda.... ela se debatendo cada vez menos, um peixinho caído do aquário, últimas convulsões de fôlego, respirando fundo, e ele estica os braços dela acima da cabeça, prendendo seus punhos, se apoiando nela ao mesmo tempo em que a penetra, e quando a penetra totalmente o suspiro súbito, o gemido seco; as pernas da fêmea tremem, ela se contrai repentina, involuntariamente, para logo se abrir: molhada, louca, abraçando com as pernas, um rio entre suas pernas, ah, insana, possuída, presa, com força, fisgada, empalada, aah, atrapada pelo macho, ela se entrega, num sussurro:

não me deixa fugir....

não me deixa fugir....



não me deixa.... fugir....

"As mulheres mais interessantes pertencem aos homens mais atrevidos".

Jack Nicholson

quinta-feira, 15 de novembro de 2007


Minto


Cheguei ao cume de uma elevação rochosa. Sua superfície era generosamente coberta por vegetação. Uma vegetação com a sinuosidade típica do cerrado, no entanto, sem a agressividade que dela se espera: os arbustos não eram espinhentos, o capim não era áspero, os pequis eram desprovidos de suas afiadas agulhas. A temperatura naquela noite era perfeita, quente o suficiente para que o corpo se sentisse acalentado. As estrelas só não eram mais visíveis por conta do intenso brilho da Lua. “Imagina quando ela estiver cheia”, pensei. Pois é, cheia, talvez fosse demais pra mim. Só, naquela noite de abundância e de parcimônia ao mesmo tempo, tudo parecia fazer sentido. Sentia meu corpo físico firme e aquecido pelo esforço da subida. Circulava uma energia viva por minhas veias. Não era a ausência de outros seres humanos que preenchia minha consciência, era a presença contagiante da vida a minha volta que dominava minha percepção. Sentei por alguns instantes para recuperar o ritmo sereno da minha respiração e, de olhos semi-cerrados, apenas segui com minha atenção seu suave movimento de desaceleração. A cada inspiração, os pulmões retinham um pouco mais o ar. A cada expiração, saboreava o doce prazer de estar vivo. Ergui os olhos e lá estava a barca deslizando pelos céus com suas velas estufadas. Foi só a partir desse momento que lembrei do resto da humanidade e, pra mim, a humanidade sempre foi aquele pacato vilarejo. Quando desviei meus olhos para as casinhas jogadas caoticamente no vale, surpreendi o movimento febril dos moradores para fora das residências. Todos se voltavam para aquele fenômeno celeste: a chegada da barca. Progressivamente, o ruído dos efusivos comentários era substituído pelo som do vento noroeste ecoando por onde passasse, como um imenso instrumento de sopro espontâneo. As vozes tinham se calado, mas interiormente, cada um celebrava uma cerimônia não-verbal de gratidão em seu templo interior. De dentro da barca, seus ocupantes iniciaram a parte mais esperada e misteriosa do ritual. Uma espécie de forma luminosa etérea era arremessada do convés formando cascatas douradas. A noite, agora, era dia. Um dia único em que a luz maior provinha de indescritíveis cachoeiras de luz. Naquele tempo, não havia religião. A magia da vida era palpável. O ritmo da vida era regido pelos abundantes milagres. O homem apenas fingia comandar o espetáculo, como uma criança que gesticula freneticamente com uma batuta invisível diante de uma orquestra sinfônica. Mas eram outros tempos. Tempos em que cascatas douradas caiam sobre os homens.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007


Hemingway não somente estava em Idaho, como também se encontrava, naquele verão, in his own private idaho, como diz a música, não somente no estado/divisão geográfica como no pejorativo estado de espírito de ele batiza. ora, um homem tem o direito de decidir quando encerrar a própria vida, justo ele, tendo vivido já tantos prazeres e experiências várias, tendo provado de todos os cálices da existência, tendo deixado um legado não perfeito – o que se há de fazer – mas enfim satisfatório e engrandecedor, nada mais natural que decidir quando baixar o pano, sair de cena, pendurar as penas e as armas. o dilema, resolveria com uma de suas favoritas, apontada justo acima dos seus olhos, e ninguém ousaria fotografá-lo num caixão; que restassem à posteridade apenas as imagens de um homem alegre de estar vivo, bonachão, orgulhosamente ébrio.

à época, um famoso retailer norte-americano promoveu sua aproveitadora campanha de marketing viral, disseminando a idéia de que a espingarda utilizada pelo escritor havia sido comprada em uma de suas lojas – belíssima honra. mas o capitalismo não nasceu póstumo, e amigos mais próximos estavam seguros de que aquela arma era muito mais antiga, mais especial. La Yegua, era como Hemingway a chamava, quase que carinhosamente. ela que havia o acompanhado a tantas sessões de tiro no clube de cazadores del cerro, naquela Cuba ainda pré-revolucionária. lá, naquele mesmo lugar onde ele negava-se a dizer adeus às armas, acertando sempre as palomitas que lançavam seus ajudantes.

é forçoso dizer que, também lá, os futuros revolucionários que levariam o país a mais uma independência forjavam sua pontaria, liderados por um jovem advogado, por nome Castro, ainda um ilustre desconhecido em sua própria pátria. durante os meses em que atirou visualizando os bustos de soldados mortos e o despertar de um novo país, era justamente com La Yegua que atirava, emprestada por um dos garotos que cuidavam das armas de Hemingway; ela também, por alguma razão, sua favorita. seus alvos nunca em pombas; estas defenderia que vivessem apenas para soltá-las num momento futuro, sendo surpreendido pelo retorno de um pássaro ao seu ombro; em sua tela mental, a comoção e esperança e efusão em meio aos populares.

naquela madrugada, quando chegaram os revolucionários ao quartel de Moncada, Fidel estava confiante. havia planejado cuidadosamente aquele momento. e tendo praticado na véspera, cuidadosamente trocou La Yegua por outra calibre 12 similar, conduzindo-a, sua companheira, a bailar sobre os defensores do regime. sangre e gritos e luta, muitos companheiros presos, mortos, torturados à morte, ameaçados pela sombra pegajosa da morte. ao final, ele não tinha dúvidas: fora ela quem o protegera em meio ao caos da operação. confidenciou a seu irmão Raul. e tratou de volvê-la, cerimonialmente, ao seu local de descanso, sem que ninguém se desse conta do câmbio. era aquele momento seu agradecimento e despedida. fora preso logo em seguida

Hemingway jamais saberia de Castro, que jamais saberia de Hemingway.

a preferida do escritor agora dormia e sonhava em seu berço. sentado no banco de trás do Ford, lendo sobre os recentes acontecimentos, o americano chegava ao clube e uma vez mais tocava nela. muitas pombas ainda seriam abatidas por seu soco certeiro. no entanto, naquele dia Hemingway errou mais que o habitual. as três pombas perdidas renderam 15 dólares aos garotos do clube – palavra é palavra –, que festejavam a generosidade do estrangeiro. e La Yegua parecia diferente. sensibilizada. o escritor percebeu essa sutileza, sentiu sua mensagem no vapor que ainda saia dos canos quentes. algo estranho, incomum, que ficara gravado em sua lembrança. algo que sequer as torturantes sessões de eletrochoque ao qual fora submetido anos depois puderam apagar. era nisso que pensava naquela tarde de verão, enquanto tocava seu cano duplo.

anos depois lá estava ele, náufrago às avessas, impossibilitado de regressar àquela ilha de amores, belezas, mistérios. eram semanas de ócio e indecisão. ser mantido cativo em sua terra natal. la bodeguita del medio não poderia estar em outro lugar que não Havana. o kir royale não tinha o mesmo sabor em Ketchum. a espingarda o fazia lembrar com nostalgia daqueles tempos. seu lugar não eram aquelas montanhas, aqueles choques insanos, a falta de sensibilidade à sua insatisfação. ele sabia, não havia dúvidas, que havia chegado o momento.

Hemingway estava diferente. sensibilizado. La Yegua, exilada como ele, percebia essa sutileza, sentia sua mensagem no toque delicado com que ele a afagava. ela o compreendia. e mais uma vez se entregou em suas mãos.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

"Amigo é aquele que ajuda a enterrar o cadáver".

Al Capone


teu perfume, Juliette, segue tão vivo como se com ele estivesses em carne e osso provando vestidos em frente ao espelho, me indagando sobre este ou aquele broche sendo que todos ficavam tão bem, e ver-te experimentando um a um me levava a explorar com mais atenção os teus olhos vivos e tua pele clara e teu sorriso de Monalisa que tomou carne sem prescindir do espírito. este perfume segue dançando, Juliette, pelos cômodos vazios de forma na ausência do teu andar gracioso e infantil, quando andavas de um lado ao outro com pós e batons esculpindo com tanto cuidado a superfície serena da tua face, esta face luminosa que segue no espelho, segue no espelho trançando os cabelos antes de dormir.

eras ainda mais bela, Juliette, quando eu te ouvia cantar passeando pelos jardins em manhãs despreocupadas de domingo, fazendo dar saltinhos de felicidade a pequena Clara, que já assinalava na face precoce toda a beleza que tão breve herdaria na puberdade. essa beleza que transbordava em gestos, em olhares carinhosos, em atos de devoção desmedida e entrega absoluta, em que o calor do teu corpo desarmava meu coração e me levitava sobre sonhos bucólicos.

tuas cartas, Juliette, de amor dedicado, reavivam teus lábios cada vez que as abro. e tua presença sobre o tablado, tão leve e tão vigorosa, se ensaia e representa em minha frente cada vez que as leio. sigo sentindo teu perfume. ainda ouço teus passos. ainda há pouco jurei ver tuas vestes esvoaçantes correndo livres, varrendo a poeira da saudade dos dias mais claros e noites mais belas que vivi. teus olhares e sorrisos me assaltam em cada cômodo vazio, em cada corredor. sempre tão viva, tão presente, tão perene em sua devoção. guardo-te aqui, aqui de onde nunca saíste. tuas tranças e braços, nossos corpos e almas, seguem íntegros, unidos na doce realidade dos meus mais belos sonhos.


para J. Drouet

terça-feira, 6 de novembro de 2007



quem tem olhos que veja, e admire os tons e as cores. os cegos estão satisfeitos em sua cegueira.

satisfeitos eles vagueiam pelas vielas lamacentas do esquecimento, tropeçando em poças e tateando paredes frias que são tudo o que há de mais palatável aos seus sentidos. satisfeitos eles farejam todos os sons que seus ouvidos surdos são incapazes de perceber. satisfeitos ainda eles temem a luz que embranquece suas pupilas e rompe a harmonia soturna da escuridão onde mergulham. uma vez mais vos digo: não!; não choreis pelos cegos. pois aqueles que são incapazes de chorar por sua própria desgraça não merecem ter vertidas as lágrimas dos outros. e aqueles que acalentam e alimentam o próprio infortúnio não podem senão desmentir toda a luz que são incapazes de ver, e propagar a pestilência aos que se encontram sadios. acaso são estes os miseráveis pelos quais chorais? chorai antes com força e desespero apenas para afogá-los em agonia na enchente de vossos olhos! chorai antes de felicidade por vê-los e perceber suas cores opacas e seus passos trôpegos, e poder desviar-vos deles. pois eles estão satisfeitos, e o vosso pranto não os comove. antes vos gritam: “fechai os olhos, e parareis de chorar!” e seguem incautos pelas estradas da perdição.

recordai antes, e sempre, do dia em que éreis também cegos, e finalmente vos permitistes abrir os olhos para a realidade. daquele dia em que superastes vossa própria cegueira e satisfação.

abrir vossos próprios olhos; eis o que podeis fazer. tudo o mais é cegueira.


imagem: Blind (1916), de Paul Strand
"Toda unanimidade será castigada".

Nelson Rodrigues

quinta-feira, 1 de novembro de 2007



PLAYMOBIL


O texto pro blog. Não é uma necessidade de expressar uma inquietação intelectual, um sentimento pungente. Esse texto preenche a miserável missão de ocupar um ordinário espaço no mundo virtual. Ordinário! Comum. Sem brilho. Adjetivos atribuídos àquilo que não comove ninguém. Às manifestações que, de tão rotineiras, perdem um pouco da sua realidade. Nem lembramos se aconteceram de fato. São coisas que se tornam etéreas. O homem não projeta sua atenção sobre estas. Sua textura de realidade fica fina, quase transparente. Até que a coisa de tão esquecida perca até o nome. A partir daí, ela só aparecerá simbolicamente nos sonhos da humanidade. Eventualmente, alguém pode resgatar aquilo, atribuir-lhe de novo forma e significado, ainda que ninguém possa lembrar que aquilo tenha tido existência anterior. Se a linguagem não aprisiona a realidade em nomes - gaiolas herméticas e frias -, a comunicação, então, exige excesso de humanidade para um playmobil. “Nós, playmobils, encaixamos freneticamente nossos bloquinhos conceituais em duas dimensões, formando imensos monólitos de obviedade.” Trecho da Declaração Positiva dos Direitos dos Bonecos de Plástico. “Artigo Primeiro: todo ser pode abdicar de sua dimensão de ser. É-lhe garantido o direito inalienável de alienar-se de sua própria existência.” Um dia, algum desregrado que ainda esconde a habilidade de sonhar em alguma esquina de sua monótona cidade de concreto, outrora, sua consciência, chora compulsivamente de saudade de um desconhecido boneco que se inquietava com a vida.