quarta-feira, 14 de novembro de 2007


Hemingway não somente estava em Idaho, como também se encontrava, naquele verão, in his own private idaho, como diz a música, não somente no estado/divisão geográfica como no pejorativo estado de espírito de ele batiza. ora, um homem tem o direito de decidir quando encerrar a própria vida, justo ele, tendo vivido já tantos prazeres e experiências várias, tendo provado de todos os cálices da existência, tendo deixado um legado não perfeito – o que se há de fazer – mas enfim satisfatório e engrandecedor, nada mais natural que decidir quando baixar o pano, sair de cena, pendurar as penas e as armas. o dilema, resolveria com uma de suas favoritas, apontada justo acima dos seus olhos, e ninguém ousaria fotografá-lo num caixão; que restassem à posteridade apenas as imagens de um homem alegre de estar vivo, bonachão, orgulhosamente ébrio.

à época, um famoso retailer norte-americano promoveu sua aproveitadora campanha de marketing viral, disseminando a idéia de que a espingarda utilizada pelo escritor havia sido comprada em uma de suas lojas – belíssima honra. mas o capitalismo não nasceu póstumo, e amigos mais próximos estavam seguros de que aquela arma era muito mais antiga, mais especial. La Yegua, era como Hemingway a chamava, quase que carinhosamente. ela que havia o acompanhado a tantas sessões de tiro no clube de cazadores del cerro, naquela Cuba ainda pré-revolucionária. lá, naquele mesmo lugar onde ele negava-se a dizer adeus às armas, acertando sempre as palomitas que lançavam seus ajudantes.

é forçoso dizer que, também lá, os futuros revolucionários que levariam o país a mais uma independência forjavam sua pontaria, liderados por um jovem advogado, por nome Castro, ainda um ilustre desconhecido em sua própria pátria. durante os meses em que atirou visualizando os bustos de soldados mortos e o despertar de um novo país, era justamente com La Yegua que atirava, emprestada por um dos garotos que cuidavam das armas de Hemingway; ela também, por alguma razão, sua favorita. seus alvos nunca em pombas; estas defenderia que vivessem apenas para soltá-las num momento futuro, sendo surpreendido pelo retorno de um pássaro ao seu ombro; em sua tela mental, a comoção e esperança e efusão em meio aos populares.

naquela madrugada, quando chegaram os revolucionários ao quartel de Moncada, Fidel estava confiante. havia planejado cuidadosamente aquele momento. e tendo praticado na véspera, cuidadosamente trocou La Yegua por outra calibre 12 similar, conduzindo-a, sua companheira, a bailar sobre os defensores do regime. sangre e gritos e luta, muitos companheiros presos, mortos, torturados à morte, ameaçados pela sombra pegajosa da morte. ao final, ele não tinha dúvidas: fora ela quem o protegera em meio ao caos da operação. confidenciou a seu irmão Raul. e tratou de volvê-la, cerimonialmente, ao seu local de descanso, sem que ninguém se desse conta do câmbio. era aquele momento seu agradecimento e despedida. fora preso logo em seguida

Hemingway jamais saberia de Castro, que jamais saberia de Hemingway.

a preferida do escritor agora dormia e sonhava em seu berço. sentado no banco de trás do Ford, lendo sobre os recentes acontecimentos, o americano chegava ao clube e uma vez mais tocava nela. muitas pombas ainda seriam abatidas por seu soco certeiro. no entanto, naquele dia Hemingway errou mais que o habitual. as três pombas perdidas renderam 15 dólares aos garotos do clube – palavra é palavra –, que festejavam a generosidade do estrangeiro. e La Yegua parecia diferente. sensibilizada. o escritor percebeu essa sutileza, sentiu sua mensagem no vapor que ainda saia dos canos quentes. algo estranho, incomum, que ficara gravado em sua lembrança. algo que sequer as torturantes sessões de eletrochoque ao qual fora submetido anos depois puderam apagar. era nisso que pensava naquela tarde de verão, enquanto tocava seu cano duplo.

anos depois lá estava ele, náufrago às avessas, impossibilitado de regressar àquela ilha de amores, belezas, mistérios. eram semanas de ócio e indecisão. ser mantido cativo em sua terra natal. la bodeguita del medio não poderia estar em outro lugar que não Havana. o kir royale não tinha o mesmo sabor em Ketchum. a espingarda o fazia lembrar com nostalgia daqueles tempos. seu lugar não eram aquelas montanhas, aqueles choques insanos, a falta de sensibilidade à sua insatisfação. ele sabia, não havia dúvidas, que havia chegado o momento.

Hemingway estava diferente. sensibilizado. La Yegua, exilada como ele, percebia essa sutileza, sentia sua mensagem no toque delicado com que ele a afagava. ela o compreendia. e mais uma vez se entregou em suas mãos.

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