quinta-feira, 15 de novembro de 2007


Minto


Cheguei ao cume de uma elevação rochosa. Sua superfície era generosamente coberta por vegetação. Uma vegetação com a sinuosidade típica do cerrado, no entanto, sem a agressividade que dela se espera: os arbustos não eram espinhentos, o capim não era áspero, os pequis eram desprovidos de suas afiadas agulhas. A temperatura naquela noite era perfeita, quente o suficiente para que o corpo se sentisse acalentado. As estrelas só não eram mais visíveis por conta do intenso brilho da Lua. “Imagina quando ela estiver cheia”, pensei. Pois é, cheia, talvez fosse demais pra mim. Só, naquela noite de abundância e de parcimônia ao mesmo tempo, tudo parecia fazer sentido. Sentia meu corpo físico firme e aquecido pelo esforço da subida. Circulava uma energia viva por minhas veias. Não era a ausência de outros seres humanos que preenchia minha consciência, era a presença contagiante da vida a minha volta que dominava minha percepção. Sentei por alguns instantes para recuperar o ritmo sereno da minha respiração e, de olhos semi-cerrados, apenas segui com minha atenção seu suave movimento de desaceleração. A cada inspiração, os pulmões retinham um pouco mais o ar. A cada expiração, saboreava o doce prazer de estar vivo. Ergui os olhos e lá estava a barca deslizando pelos céus com suas velas estufadas. Foi só a partir desse momento que lembrei do resto da humanidade e, pra mim, a humanidade sempre foi aquele pacato vilarejo. Quando desviei meus olhos para as casinhas jogadas caoticamente no vale, surpreendi o movimento febril dos moradores para fora das residências. Todos se voltavam para aquele fenômeno celeste: a chegada da barca. Progressivamente, o ruído dos efusivos comentários era substituído pelo som do vento noroeste ecoando por onde passasse, como um imenso instrumento de sopro espontâneo. As vozes tinham se calado, mas interiormente, cada um celebrava uma cerimônia não-verbal de gratidão em seu templo interior. De dentro da barca, seus ocupantes iniciaram a parte mais esperada e misteriosa do ritual. Uma espécie de forma luminosa etérea era arremessada do convés formando cascatas douradas. A noite, agora, era dia. Um dia único em que a luz maior provinha de indescritíveis cachoeiras de luz. Naquele tempo, não havia religião. A magia da vida era palpável. O ritmo da vida era regido pelos abundantes milagres. O homem apenas fingia comandar o espetáculo, como uma criança que gesticula freneticamente com uma batuta invisível diante de uma orquestra sinfônica. Mas eram outros tempos. Tempos em que cascatas douradas caiam sobre os homens.

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