sexta-feira, 14 de dezembro de 2007


contam que entre as inúmeras realizações do rei Sharyar estava o hecho de ter derrotado, em uma única batalha, os sete líderes do clã inimigo que habitava as montanhas próximas e vivia da predação de seus rebanhos. com o sangue de seus primos e tios nas mãos, o monarca alertou todos os vizires e chefes tribais sob o seu domínio sobre qual o destino daqueles que ousassem minar a paz que reinava naquelas paragens há tantas gerações.

outros relatos tão insólitos dão conta que o rei, insatisfeito com o andamento das obras de uma ponte, labutou uma tarde inteira dando cabo sozinho de um trecho entre duas vigas onde haviam se arrastado os operários durante toda uma semana. os operários veriam o último pôr-do-sol naquela tarde, como mostra do que passaria aos indolentes que refreassem pela omissão o avanço do império.

ainda uma outra feita, tendo o pânico se disseminado no harém do palácio, entrou o rei a enfrentar, a mãos nuas, uma terrível serpente negra, cujo veneno mata instantaneamente, que havia adentrado o recanto das virgens. este último prodígio o fez a pedido de sua esposa, aquela mesma que segundo os relatos mancharia sua honra e que por isso seria executada, restando do amor do monarca um terrível carcinoma em seu ardente e passional coração mesopotâmico – que minaria sua confiança em todas as outras mulheres.

estes relatos maravilhosos escaparam ao alcance das Mil e Uma Noites, mas ajudariam a compor este personagem que, ferido pelo desamor, prendeu-se à roda do ressentimento, recasando-se inúmeras vezes com outras virgens apenas para assassiná-las na manhã seguinte, com lágrimas nos olhos, por ter sido traído pela mulher que honrava.

aunque o rei manifestasse notável agrado em abrir as artérias dos seus desafetos, é difícil considerar que o assassinato das esposas lhe gerasse alguma satisfação, pois que longe de o desagradarem colhiam, ainda que por pouco tempo, migalhas do seu carinho real, tendo a infeliz sorte de serem inocentes vítimas da sua desventura - e isto depois de desdobrarem-se em carícias para sarar os sentimentos do amado; tais crimes apenas replantavam a angústia em seu peito, angústia da qual não sabia se desvencilhar. a insatisfação do rei frente à perda da amada seria aplacada apenas pela veludosa voz de Sherazade, aquela que a muito custo lhe foi dada em núpcias para contar-lhe, noite após noite, histórias fantásticas que se desdobravam nas mãos de personagens que contavam novas histórias sobre outros personagens.... e assim em uma sucessão infinitesimal de contos fantásticos que aparte de suas narrativas evidenciavam ao rei uma nova paixão; ao que dissolveu-se enfim a mancha em seu peito, novamente aberto ao sabor da vida.

reuniu-se neste momento a ternura incondicional da esposa ao renascimento do amor do rei, e aos mil e um dias de glórias e fulgores de Sharyar seguiram-se gloriosamente estas mil e uma noites de venturas de Sherazade, compondo este conjunto o yin-yang sagrado do meio oriente, onde os elementos masculino e feminino encontraram um no outro aquilo que em si mesmos haviam perdido.

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