quinta-feira, 20 de dezembro de 2007


o que me dá mais medo é pensar que pode haver outros como eu no meio da multidão. a repentina descoberta parece me retirar bruscamente do anonimato, espanto; de repente estou aberto, explicitamente visível, todos me observam, ninguém mais é observado. há mais alguém. tento identificá-lo, os rostos permanecem indistinguíveis. a multidão é formada por indivíduos cuja existência independe dela, mas que juntos criam uma existência maior da qual às vezes são apenas componentes inconscientes. andam para todos os lados sem obedecer qualquer tipo de padrão que possa ser estudado, notariado e comparado. falam sem parar, sem intervalos, todas as falas se mesclam num pavê de ruídos onde nada se destaca, a não ser um ou outro riso mais efusivo, um chamado a alguém distante, uma fala mais alta que emerge da superfície como uma onda para logo após quebrar em espuma, e voltar às profundidades. me lembro de outras multidões, é o mesmo ruído das multidões, nada inteligível, outros sons se parecem com este, o mesmo ruído baixinho dos salões luxuosos, a mesma manifestação explosiva de um estádio emocionado, o mesmo silêncio absoluto onde só a brisa arranha os ouvidos mais atentos, o ruído de uma cidade vista da porta de um helicóptero, a interferência irritante da televisão ligada no canal 247, agora tudo faz sentido, aquela interferência irritante, contendo todos os sons do mundo. tento me fixar nas imagens, os rostos desconhecidos jamais se destacam, mas não se trata de uma massa como tantas outras, um comício de deputado estadual, uma passeata de cidadãos contra a violência, um show beneficente na beira da praia, é uma massa até certo ponto, mas há limites, de repente ficam mais claras as fronteiras entre os componentes singulares, não há duas pessoas da mesma altura, os tons de cabelo não são idênticos a menos que tenha sido intencional – gêmeos não têm cabelos idênticos –, as roupas são um elemento extravagante de individualização, a sujeira dos tênis não segue parâmetros pré-definidos, elementos mais ressaltados como cintos, colares, brincos, sapatos, cachecol de seda, há uma infinidade de manifestações que impede a galeria de haver se transformado numa espécie de travessa gigante para uma mousse de pessoas desconhecidas, e isso apenas reforça a impressão; há mais alguém, há mais alguém aqui, já estou olhando para todos os lados. alguém pode estar me observando e fazendo estas mesmas considerações. vejo-a com uma caderneta mental, seus neurônios desenhando uma flor, uma borboleta, as linhas curvas do vento soprado por uma nuvenzinha com olhos e nariz e bochechas rosadas, e logo um comentário escatológico sobre a bolsa da menina de saia plissada que ela seguiu com o olhar até se deparar comigo no caminho, a minha imagem se interpôs como uma barreira por alguma razão, eu estava ocupado mexendo no celular, alguém havia acabado de contar uma piada, todos ríamos, eu gesticulava insano como se estivesse declamando um monólogo no palco da minha interpessoalidade, eu parecia indiferente à multidão – e ninguém é indiferente –, eu observava a multidão assim como ela, e fazia anotações mentais e ela se deu conta disso, bom, algo acontecia naquele momento, ela deteve o seu olhar em mim, é isso, há mais alguém, é sempre uma tarefa árdua descobrir quando se está sendo observado, a intuição conta muitos pontos para a descoberta mas agora ela está inerte, não pronunciarás o nome da Intuição em vão, ela se reserva para momentos ditos mais importantes, mas o momento é agora, descobrir quem me observa no meio da multidão pode ser o momento mais importante de toda a minha vida! meus medos e minhas esperanças e meus desejos se mesclando, eles sempre tão independentes, agora eram também indistinguíveis, haviam mergulhado na multidão e eu já não os via da mesma forma, com os mesmos olhos, o que está acontecendo?, meus medos, esperanças, desejos, se fundiram, uma grande multidão, eu sou uma grande multidão onde alguém me observa, eu não sou o único que observa, o que me dá mais esperança é pensar que pode haver outros como eu no meio da multidão, a repentina descoberta parece me tirar bruscamente do anonimato, eles estão em algum lugar, de repente estou aberto, visível, nunca estive tão visível, eles estão em algum lugar, é o que me dá mais medo. mentira, o que me dá medo é não vê-los, o que me angustia é não encontrá-los, é o que eu mais desejo, o que eu mais desejo é pensar que pode haver outros como eu no meio da multidão, eles estão em algum lugar, eu sei, eles estão em algum lugar, de repente estou aberto, explicitamente visível, a multidão é formada por indivíduos cuja existência independe dela; mas juntos esses indivíduos criam uma existência maior da qual nem sempre estão conscientes, é o mesmo ruído das multidões mas uma fala mais alta emerge da superfície como uma onda para logo após quebrar em espuma e voltar às profundidades, eu ouvi esta fala, eu tento ouvir, eu tento ver, não vejo, não ouço nada, um pavê de ruídos, uma mousse de pessoas, um banquete cheio de sobremesas e as pessoas sentadas à mesa os comem, os devoram sem parar, estão devorando a nós, colheres voando no espaço, era isto o que vias!, desenhos ingênuos, uma colher levando à boca um pedaço generoso de pudim, as pernas de uma dama da sociedade calçando um sapato de salto com um rasgo retilíneo na meia-calça, as vacas pastando sobre uma colina verde e arredondada como o ventre de uma gestante e sobre elas uma nuvenzinha com olhinhos e narizinho e boquinha que sopra um ventinho feito de linhas curvas: a bolsa te desconcentrou, a bolsa que viraria um enorme porco inflável boiando no céu sustentado por cordas, e uma multidão puxava essas cordas, mas algo aconteceu, tu me vistes, algo acontecia e me vistes, há alguém, alguém me observa, em algum lugar, eu ainda não te vi, a multidão com seus andares e falas e roupas coloridas, há alguém!, meu medo!, minha esperança!, meu desejo!, encontrar alguém em meio às pessoas!, encontrar alguém na multidão!


foto: Crowd, Misha Gordin.

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