quinta-feira, 27 de dezembro de 2007
vigílias em todas as paróquias da região de Brodowski (SP) marcam o sétimo dia do formidável roubo de duas renomadas obras de arte do museu de arte de São Paulo, o masp. trata-se de um Pablo Picasso, o retrato de suzanne bloch (1904), e um Cândido Portinari, o lavrador de café (1939). as obras foram subtraídas do acervo com a ajuda de um pé-de-cabra e do risível esquema de segurança do museu que, alega-se, visava proteger com eficiência um patrimônio cujo valor de troca pode chegar a bilhões de reais.
abalada pela crise, a diretoria do museu se prontificou a dar respostas eficientes ao problema da insegurança: propôs o fechamento do vão livre do masp. sem dúvida, destruir o patrimônio histórico tombado para aumentar a sensação de segurança dos curadores, e não a segurança propriamente, parece uma proposta razoável. a argumentação do tesoureiro do museu não poderia ser mais esclarecedora: "todos os parques têm grades".
inconformadas, beatas do interior paulista revezam-se em rosários pelo encontro das obras perdidas. enquanto não se desenrola o dramático imbróglio do roubo dos quadros, fiamo-nos nas orações das beatas de Brodowski e de todas as paróquias do Brasil que andam a destrinchar suas ave-marias pela solução do caso.
agora, sem apelar ao emocional, cabe fazer uma fria análise do patrimônio covardemente subtraído ao acervo cultural do país na madrugada daquela quinta-feira, 20. o retrato de suzanne bloch é evidentemente um representante ímpar da fase azul de Picasso, orçado nos seus 50 milhões de dólares, uma obra que qualquer museu gostaria de ter em acervo, e todos os demais clichés. este narrador muito se compadece do seu desaparecimento, dado o valor histórico-artístico-cultural da tela; entretanto, compadece-se ainda um pouco mais do paladar duvidoso do colecionador que teria encomendado seu furto - vide as feições da distinta dama retratada.
segunda-feira, 24 de dezembro de 2007
cristãos, celebrai. que vossas vidas sejam preenchidas pelas glórias e graças mais altivas.
de minha parte, desejo-vos tudo o que o espírito natalino contemporâneo pressupõe: sorrisos mais brancos, familiares felizes, uma ceia farta, presentes vários, para todos os parentes e correlatos, luzes dentro e fora de seus corações, abraços sinceros. e se possível, menos orações chatas e mais sobremesas gostosas. celebrai, irmãos. é o próprio Filho do Altíssimo quem vos ergue a taça, e aquele que não se embriagar não será digno do Reino dos Céus.
domingo, 23 de dezembro de 2007
sexta-feira, 21 de dezembro de 2007
Na sua organização geral, o espaço-tempo construído pelas imagens e sons estará obedecendo a leis que regulam modalidades narrativas que podem ser encontradas no cinema ou na literatura. A seleção e disposição dos fatos, o conjunto de procedimentos usados para unir uma situação a outra, as elipses, a manipulação das fontes de informação, todas estas são tarefas comuns ao escritor e ao cineasta. Apontei a equivalência entre paralelismo na montagem e o “enquanto isto...” da leitura. Posso apontar equivalências também em relação ao procedimento considerado chave na gênese da arte cinematográfica. A mudança do ponto de vista de uma mesma cena, importante ruptura frente ao espaço teatral pode ser aproximada a procedimentos freqüentemente usados pelo escritor ao compor literariamente uma cena qualquer. Também este expõe os fatos através de um conjunto de detalhes particulares ou através de observações que dizem respeito ao conjunto, tal como na representação do cinema. Esta aproximação, evidentemente, não pode ir além desta indicação de uma semelhança de estrutura. Em ambos os casos, trata-se da representação dos fatos construída através de um processo de decomposição e de síntese dos seus elementos componentes. Em ambos afirma-se a presença da seleção do narrador, que estabelece suas escolhas de acordo com determinados critérios. O fato de um ser realizado através da mobilização de material lingüístico e de outro ser concretizado em um tipo específico de imagem introduz todas as diferenças que separam a literatura do cinema. Diferenças que, em geral, são associadas ao suposto contraste entre o “realismo” da imagem e a flagrante convencionalidade da palavra escrita. O que tal comparação esconde é a natureza particular das convenções que presidem um determinado método de montagem, pois a hipótese “realista” implica na admissão de que há um modo normal, ou natural, de se combinar as imagens (justamente aquele apto a não destruir a “impressão de realidade”).
quinta-feira, 20 de dezembro de 2007
COUTINHO, Eduardo. Jogo de cena, Brasil, 2007, 104 min.
Filme, pra mim, de difícil classificação. Aspectos de documentário, como os depoimentos reais de pessoas desconhecidas que atenderam ao anúncio do cineasta; aspectos de ficção, como as re-interpretações dos testemunhos por atrizes. O filme transita permanentemente entre o real e o fictício gerando impactos afetivos distintos. Quando aparece um rosto famoso contando a mesma história do rosto desconhecido provoca-se uma sensação de segurança por termos, supostamente, elementos suficientes para distinguir o que era verdade do que era mentira. Já nos momentos em que nos era apresentado um único depoimento sem contrastar com outra versão para o mesmo, criava-se uma tensão angustiante. Parece um tipo de canalhice não apresentar claramente ao espectador se estamos assistindo a um duplo do mundo real ou apenas a uma criação artística. No entanto, se reconhecermos que, em verdade, essa distinção é meramente ideológica, convencionalmente estabelecida, mergulhamos num mar de incertezas provocador, mas talvez mais honesto do que esse maniqueísmo simplista. Esse jogo que se estabelece poderia ter ido mais longe. Nos momentos em que o diretor/entrevistador se dirige às atrizes tratando-as pelos seus conhecidos nomes para extrair impressões sobre suas atuações, adentramos em terreno seguro. Seria bastante pertinente e perturbador apresentar indícios de que mesmo esses diálogos “francos” entre atrizes e diretor poderiam não ser autênticos.
segunda-feira, 17 de dezembro de 2007
domingo, 16 de dezembro de 2007
sexta-feira, 14 de dezembro de 2007
outros relatos tão insólitos dão conta que o rei, insatisfeito com o andamento das obras de uma ponte, labutou uma tarde inteira dando cabo sozinho de um trecho entre duas vigas onde haviam se arrastado os operários durante toda uma semana. os operários veriam o último pôr-do-sol naquela tarde, como mostra do que passaria aos indolentes que refreassem pela omissão o avanço do império.
ainda uma outra feita, tendo o pânico se disseminado no harém do palácio, entrou o rei a enfrentar, a mãos nuas, uma terrível serpente negra, cujo veneno mata instantaneamente, que havia adentrado o recanto das virgens. este último prodígio o fez a pedido de sua esposa, aquela mesma que segundo os relatos mancharia sua honra e que por isso seria executada, restando do amor do monarca um terrível carcinoma em seu ardente e passional coração mesopotâmico – que minaria sua confiança em todas as outras mulheres.
estes relatos maravilhosos escaparam ao alcance das Mil e Uma Noites, mas ajudariam a compor este personagem que, ferido pelo desamor, prendeu-se à roda do ressentimento, recasando-se inúmeras vezes com outras virgens apenas para assassiná-las na manhã seguinte, com lágrimas nos olhos, por ter sido traído pela mulher que honrava.
aunque o rei manifestasse notável agrado em abrir as artérias dos seus desafetos, é difícil considerar que o assassinato das esposas lhe gerasse alguma satisfação, pois que longe de o desagradarem colhiam, ainda que por pouco tempo, migalhas do seu carinho real, tendo a infeliz sorte de serem inocentes vítimas da sua desventura - e isto depois de desdobrarem-se em carícias para sarar os sentimentos do amado; tais crimes apenas replantavam a angústia em seu peito, angústia da qual não sabia se desvencilhar. a insatisfação do rei frente à perda da amada seria aplacada apenas pela veludosa voz de Sherazade, aquela que a muito custo lhe foi dada em núpcias para contar-lhe, noite após noite, histórias fantásticas que se desdobravam nas mãos de personagens que contavam novas histórias sobre outros personagens.... e assim em uma sucessão infinitesimal de contos fantásticos que aparte de suas narrativas evidenciavam ao rei uma nova paixão; ao que dissolveu-se enfim a mancha em seu peito, novamente aberto ao sabor da vida.
reuniu-se neste momento a ternura incondicional da esposa ao renascimento do amor do rei, e aos mil e um dias de glórias e fulgores de Sharyar seguiram-se gloriosamente estas mil e uma noites de venturas de Sherazade, compondo este conjunto o yin-yang sagrado do meio oriente, onde os elementos masculino e feminino encontraram um no outro aquilo que em si mesmos haviam perdido.
em São Paulo, o governo estadual promoveu mutirão de conscientização contra o uso das famigeradas sacolas de plástico no comércio, aquelas das quais ninguém quer abrir mão pela praticidade, e que seguirão sorrindo para as próximas gerações nos 300 anos que levam, em média, para se decompor. nesse meio tempo, vão entupindo bueiros, provocando enchentes e reduzindo a vida útil dos aterros sanitários.
obviamente, a gravidade do problema exige soluções rápidas, não sem um pouco de dor de dente ao acomodado consumidor, que num breve futuro deverá levar de casa sua sacola de compras para o supermercado, ou no mínimo pagar pelos sacos plásticos que porventura vier a utilizar, como mecanismo de desestímulo.
por todo o mundo, é notável como a preocupação ambiental se funde com peculiaridades culturais. na Índia, por exemplo, algumas regiões proibiram a produção e comercialização de sacos plásticos para evitar que as sagradas vacas as ingerissem e engasgassem com as benditas – óbitos já foram registrados. no ocidente, entretanto, as motivações parecem ser bem distintas, especialmente nesses tempos de terrorismo, narcotráfico, eixo do mal e caveirão. o desestímulo do uso dos sacos plásticos se mostra como alternativa sustentável não apenas ao meio ambiente como também à segurança pública, que com a redução do uso comercial folga de contar com uma maior oferta destes práticos e eficientes instrumentos de interrogatório.
quarta-feira, 12 de dezembro de 2007
A voz, mesmo rouca, se sobrepõe aos ruídos e domina a cena pela sincronia e coerência dos movimentos corporais com o tom das palavras. O jeito da beata contido pela culpa cristã contrasta com a eloqüência verborrágica da pregação. Esses dois momentos se opõem pela maneira distinta de lidar com um impulso primal: o medo. Ora o medo é contido, enjaulado dentro do recato das boas maneiras, ora entra em intensa combustão e incendeia o comportamento, ejacula. Parece que o missionarismo, a salvação das almas alheias, alivia o furor interior da culpa. Alivia ou desvia momentaneamente a atenção. Os olhos quase permanentemente fechados indicam que mesmo os berros e apelos aos pecadores são muito mais uma reação a um embate interno do que um diálogo estabelecido com o mundo externo. Os pecadores não têm uma existência complexa a ser desvendada, contemplada, eles têm apenas o vício a ser extirpado, elas são o vício a ser extirpado. O poder da palavra não é o alcance da voz. O poder da palavra é a força da presença. E essa presença que explode energicamente altera tudo. O grito de um histérico habitual é distinto do grito de um recluso. Só o segundo cala a multidão. E a multidão mobilizada pela ruptura do momento é guiada pela voz rouca de quem seqüestrou violentamente os corações desesperançados. Sim, há finalmente uma salvação... enquanto se convencer disso o salvador.
segunda-feira, 10 de dezembro de 2007
algo que já existiu... ou não?
algo incerto.
um frio na espinha. uma premonição antiga. uma intuição. o cheiro de um perfume cujo nome nunca existiu. um olhar paradoxal: penetrante, ao mesmo tempo que fugaz. buscas nas fotos minha imagem, e não a vês; quando a vês, ainda assim não distingue seus traços. quem é esta pessoa? quem é você, afinal? buscas em vídeos, em cartas, em objetos, nas memórias de outras pessoas. elas concordam: existe algo. alguém. quem? onde está?
me confundem com a brisa fria das madrugadas. com os passos furtivos em ruas escuras. com todas as imagens periféricas indefinidas, interpretadas pela mente simplesmente como aquilo que ela quer ver. o pensamento busca aquilo que não pode compreender. os sustos provocados por essas sensações ambíguas, por essas impressões incompletas, esse intervalo mais longo entre a inspiração e a expiração!; ah, tua própria sombra te engana.
Entre um bolinho de arroz e uma rabada com agrião, descobri que minha angústia existencial era tão simples quanto uma farofa de ovos. Até então, meus olhos corrompidos pela fome, pareciam calibrados para só perceber a dor como figura, pulando de uma desgraça para outra, todo resto sendo fundo difuso e não identificável. Não tive a fome dos miseráveis, dos despossuídos; tive a fome medíocre dos alienados de seus estômagos. Quer dizer, pra onde olhasse, via tristeza, via desgosto, via arrependimento. Era como se toda a realidade concreta e abstrata ganhasse a disformidade dos reflexos no fundo de um prato vazio. Esse mal estar mobilizava toda minha atenção. Só conseguia pensar em investigar minhas emoções, meus comportamentos querendo entender o que estava errado para corrigí-lo. Essa alienação de mim mesmo, ou seja, o inacreditável desconhecimento das ligações entre meu humor e meu estômago me mergulhou em elocubrações infindáveis sobre uma infelicidade que me parecia cada vez mais complexa e perigosamente sedutora. Me enredei como um peixe que, desesperado, se debate à exaustão entre as malhas. Acabei, de alguma maneira, achando um caminho frágil e trôpego. Só bem mais tarde é que fui entender que tudo se resumia a um bom prato de comida em horários razoavelmente regulares três ou quatro vezes ao dia. De vez em quando, ainda ouço tenebrosos sussurros de angústia, mas, antes de qualquer coisa, sirvo-me um belo prato de comida pra, só depois da sobremesa, dar ouvidos aos demônios que porventura não foram exorcizados pela dica do chef.
sexta-feira, 7 de dezembro de 2007
- Saudações.
- Que dizes?
- Definho.
- Definhas?
- Sim. Carrego um mal.
- Não te preocupes. O mal em boa hora passará. É a vida?
- Como sabes?
- O diálogo é sintoma da vida. Com quem pensas que conversas?
- Ora, contigo.
- Qual a fonte de teu pensamento se não os têm?
- Que dizes! Parece insano.
- É todo o contrário, vale dizer. Estou curado...
- De quê?
- Da vida.
- Como?!
- Sou um planeta morto.
- Oh! Que restou, então, de ti?
- o movimento inercial. A suave mudança de órbita. A infinita caminhada rumo aos limites do universo em expansão.
- E a beleza da vida?
- Estás doente. Deliras. Acalme tua agitada alma que a vida se esvairá. Teus segundos se multiplicam em eras fruto de tua simpatia com a provisoriedade angustiante da vida. Olhe. Siga-nos. Dance conosco. – e, numa vistosa elipse, aprumando seus eixos, rodopiaram alegremente os planetas.
E o general gritou orgulhoso às suas tropas: “Homens! Vocês são homens! É aqui nesse campo de batalha diante dos olhos de Deus em que colocamos nossas armas às ordens do Senhor. E Ele sussurrou ao meu ouvido: ‘Não quero ver nenhum civil respirando. Quero um sacrifício à altura da minha generosidade para com teu povo.’ E que assim seja, senhores! Se acaso sentirem fraquejar seus braços diante de um desses moribundos, afastem esse demônio da covardia a golpes de machado. Demônio e inimigo abraçados sendo mandados para as pútridas lamas efervescentes do inferno. Amanhã quero sentir o agridoce cheiro de carne queimada se decompondo: pra mim, esse é o cheiro da vitória, é o bálsamo do sucesso.” Assim, motivados por essas eloqüentes palavras, marcharam os orgulhosos guerreiros com suas armas em punho com firme propósito de serem instrumentos de Deus. E o foram. Cumpriram zelosos seu dever. Poucas vezes ao Senhor foi ofertado tão autêntico genocídio. Nem os animais domésticos foram poupados. As ruas tomadas de corredeiras vivas de sangue. Os soldados estavam no fim das forças, mas, revigorados pelo sentimento de justiça e fé, atenderam à última ordem do general: expor sobre um altar improvisado as cabeças daqueles pobres miseráveis para que Deus os possa reconhecer acaso tentem, desencarnados, penetrar traiçoeiramente nos sagrados domínios dos puros.