quarta-feira, 17 de março de 2010


não pélo o pêlo
ou
manifesto pela integridade fonética na grafia da língua portuguesa


nada contra o bem-intencionado acordo para a uniformização da escrita da língua portuguesa em todo o mundo;

nada contra as bem-arquitetadas manobras para promover a língua portuguesa a um mais alto patamar, para levá-la ao rol das mais importantes línguas do mundo, para incluir o português no seleto balaio de idiomas oficiais das Nações Unidas;

bem-vindas sejam, até, as novas regras de hifenização propostas pelo último acordo ortográfico, que muito facilitarão a vida daqueles que algum dia almejaram saber onde botar o bendito tracinho, tarefa que beirava o impossível há pouco;

mas tudo, e nada menos do que tudo, contra a infame tentativa de suprimir sinais gráficos longamente aceitos na escrita sob o pretexto de simplificá-la;

tudo, e muito mais que tudo, contra a pequenez daqueles que, sob o disfarce dos reformadores, planejam, com ou sem consciência do mal que fazem, a gradativa destruição de marcas fonéticas que definem, com tanta galhardia, aspectos caros à nossa fala cotidiana, ao nosso entendimento da língua, à nossa demarcação de significados no ato de escrever;

vivam os acentos diferenciais!
mais viva o acento circunflexo!:
patinho feio dos reformadores,
firme bastião do anasalado brasileiro!

[porque para não é pára
nem Pará

e pelo, se não for pêlo
não é de pelar]

não pélo o pêlo da língua portuguesa
porque a última flor do Lácio tem espinho;
não é lisa, antes austera, ao toque estranho
antes esguia, com seus gêneros, seus números
com suas conjugações, ãos, ães

letra por letra, qualquer língua tem

a língua portuguesa, latina, árabe, mossárabe, mediterrânea
é macho de barba na cara
é fêmea de vergonhas cobertas
é carne passada em sal grosso
que se tirado antes de ir ao fogo
vira bucho, vira tripa, vira nó de se enforcar

que morra eu antes do acento
porque no dia em que ele acabar
no dia em que pélo e pêlo forem a mesma coisa
já não há português; o que há é paradoxo
o que há é o meu lamento.

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