quinta-feira, 17 de junho de 2010

elogio da barbárie

a vida é uma escola, mas os vivos nem sempre são alunos. é o que parecem provar os cerca de cem mil judeus ultra-ortodoxos que se reuniram em Jerusalém e Bnei Brak, nesta quinta-feira, em protestos pelas principais ruas dessas cidades.

o tamanho da manifestação impressiona. o seu porquê, mais ainda. os milhares de judeus ashkenazis (descendentes das comunidades judaicas dispersas pela Europa Central e Oriental) demonstravam sua fúria contra uma decisão da Alta Corte de Justiça de Israel que condenou a duas semanas de prisão, por discriminação, alguns pais que se recusaram a permitir que suas filhas estudassem com crianças judias sefarditas (descendentes de judeus da península ibérica e do Oriente Médio), nas mesmas salas.

de acordo com os ashkenazis, é seu direito evitar que suas crianças estudem com outras de níveis distintos de respeito às leis religiosas. afirmam que as duas comunidades (ashkenazi e sefardita) têm origens diferentes e que não querem que seus filhos sejam influenciados [negativamente] pelos sefarditas.

meu espírito irônico se exalta. impossível não pensar no terror das mães alemãs e puramente arianas em imaginar, nos seus piores pesadelos, suas lindas crianças dividindo o mesmo espaço com pestilentos judeuzinhos, naquelas belas manhãs da Europa do entreguerras. ou nos zelosos pais africâneres acordando em uma manhã qualquer de 1994 e tendo que entregar seus filhos pálidos à própria sorte numa sala de aula com zulus, xhosas e sabe-se lá quais outras crianças bantas. tais concessões seriam, no mínimo, uma ode à barbárie.

a região do Levante, frutuosa em conflitos, nos permite degustar os horrores de nossa civilização com a calma de quem lê as notícias durante o café. em um mês de grandes emoções, assistimos de camarote ao cuidado desproporcional do Conselho de Segurança da ONU com possíveis intenções nucleares do Irã; seu aparente desinteresse pela recusa israelense em firmar o TNP; o blatante desrespeito do Governo de Israel ao anunciar novas construções em territórios ocupados durante visita de representante dos EUA, num momento de negociação de paz com os palestinos; as denúncias de que Israel tentara vender armamento nuclear à África do Sul, em meados dos anos 1970; a desastrada ação de comandos israelenses contra a flotilha de navios que buscava romper o bloqueio a Gaza; a decorrente indigestão nas relações de Israel com a Turquia, seu aliado mais próximo na região; e agora esta convicta manifestação de milhares de conservadores em favor de um apartheid religioso, que proteja suas crianças de interpretações impróprias da Torah.

o mais triste de tudo isso talvez seja refletir como Israel - detentor de imbatível superioridade econômica e militar na região, receptor de apoio inconteste do Ocidente, tendo meios pra fazer mais do que já foi feito em toda história pela promoção da paz e da cooperação no Oriente Médio, tendo meios pra levar a outro patamar não apenas as relações internacionais como as relações humanas - permite-se eximir-se dessa nobre responsabilidade e contentar-se em ser uma arrogante e próspera fortaleza militar em meio aos seus vizinhos descontentes.

parte [significativa] da culpa reside nas mentes estreitas desses cem mil que levantam suas vozes pelo direito à discriminação, e que provavelmente foram responsáveis, com o poder dos seus votos, pelo retrógrado gabinete que hoje se esforça em destruir o apreço da opinião pública internacional pelo Estado de Israel.

quem não acredita pode ler no original: http://bit.ly/bpoKR0

foto: Moti Milrod, Haaretz.

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